sábado, maio 01, 2010

COMO UM TIME DE VÔLEI MUDOU A ROTINA DE UMA CIDADE

Por muito tempo eles viveram de paixão emprestada. Montes Claros virou uma extensão de Belo Horizonte. Cruzeiro e Atlético eram a referência esportiva mais forte, numa terra que gosta de futebol, mas nunca teve uma equipe na elite. O Formigão, como é conhecido o time da Funorte, luta na Segunda Divisão e ainda não consegue encher o campo do Cassimiro. Seu Paulo Rocha, taxista de 46 anos, foi um dos que perderam o costume de frequentar o local. Há 10 anos, o passatempo prefirido passou a ser o mesmo de praticamente toda a cidade: sentar e "beber umas" num barzinho da famosa Avenida Sanitária, como gosta de dizer. O que ele não poderia esperar era uma nova mudança de hábito, trazida por um grupo de homens altos que jogavam um esporte que troca os pés pelas mãos. A recepção foi com olhares de desconfiança. Impressão que demorou pouco para ser desfeita e acabou se transformando em orgulho, febre.

- Lembro que, quando o time chegou, todo mundo achava que aquele povo era estrela, que não ia dar moral para ninguém. Mas eles são cativantes e hoje não conseguimos mais viver sem. Eu, minhas primas, amigos acampanhamos praticamente todas as partidas deles aqui e até viajar atrás, nós viajamos. Levo meu marido junto para não ter problema. Por causa deles, não fui à missa de formatura da minha amiga e ela me perdoou. Também não fui ao aniversário do meu avô. Fiz um cartaz desejando feliz aniversário que foi mostrado durante a transmissão da TV. Ir ao ginásio virou programa de família - sorri a professora de inglês, Lenine Andrade.

Padre Honório teve participação importante na trajetória do técnico Talmo num momento decisivo.

Mais que isso. Virou programa obrigatório, seguido religiosamente. Todo e qualquer compromisso ou evento só pode ser marcado para depois dos jogos se quiser ser bem sucedido. Até mesmo um páraco da Catedral Metropolitana se rendeu ao fato. Brincou com um padre, que fingia torcer contra o time de Montes Claros, que não adiantava marcar reuniões para os dias de confronto porque ninguém iria mesmo.

O que poderia parecer exagero começou a ser compreendido por um dos poucos que ainda não tinham contato com algum integrante da equipe. Vigário da Catedral, padre Honório só se limitava a ouvir, da janela de casa, o barulho vindo do ginásio Tancredo Neves, com capacidade para cerca de 8.600 pessoas. Só chegava perto dele, quando ia, de carro, buscar a irmã. Até que um dia, se deparou com um homem alto, sentado sozinho durante uma missa. Se aproximou dele, perguntou quem era, lhe passou a mão na cabeça e falou as palavras que Talmo precisava ouvir.
- Ele me disse que era técnico de vôlei. Falei que tivesse coragem. Que quando alguém lhe jogasse uma pedra, era para pegá-la para construir algo novo. Depois dali, ele me deu ingressos para ver uma partida. Quando morava no Rio, eu já tinha ido ao Maracanã ver Flamengo e Vasco e falei que não iria vê-los jogar porque não dou conta, é muita aflição. Acabei indo. Sentei na tribuna e foi um desespero. O Cruzeiro tinha 2 a 0 e estava quase eliminando Montes Claros da competição. Não queria ficar com a fama de pé frio e comecei a pedir muito a Deus.
Deu certo. Talmo também pediu. Passar por aquele adversário significava muito para quem havia sido dispensado no início da temporada. Queria entrar na série livre de sentimentos que pudessem prejudicá-lo no comando do time. Saiu do hotel onde mora, andou 200m até a igreja e procurou padre Honório.

- Fui me confessar. Eu não tinha mágoa, mas não queria que nada parecido, que nenhuma coisa pudesse me prejudicar. Queria acabar com tudo ali e colocar um ponto final naquela história. O coração ficou livre e vi que o que estava vivendo era um presente de Deus. Reacendi a minha fé. Voltei com mais força - disse o treinador.

Talmo com Ayrton (centro) e os funcionários.

Com mais força e empenhado em não decepcionar torcedores que já dormiram até mesmo na fila para poder conseguir ingressos. Contra o Cruzeiro, quem não conseguiu entrar teve de procurar um lugarzinho em frente a um dos cinco telões que foram espalhados pela cidade. Cada um deles, com cerca de 4.000 pessoas torcendo de olhos vidrados. Ayrton Trevisan, um paulista radicado há 20 anos em Montes Claros, cansou de acompanhar a movimentação no entorno. Vigia do ginásio, ele lembra os tempos em que o local era pouco utilizado, o acesso era em ruas de terra com brita, e frequentado por mendigos e drogados.
- Hoje a emoção aqui é como se fosse num estádio de futebol em dia de clássico. Eu já conhecia alguns dos jogadores pela TV, quando ainda nem tinham vindo para cá. Mas para muitos o vôlei é novidade. Tenho a camisa autografada por todo o time que dei para o meu neto, fotos e até um calção. Eles nos tratam muito bem. São pessoas simples que mudaram a rotina de todos.


O taxista Paulo Rocha mostra foto que guarda no celular de um amigo com Lorena.

BONECOS DO LORENA?

Aos 54 anos, o homem que já trabalhou como frentista, balconista, mascateiro, feirante, vendedor e até como um dos seguranças de Lula, então candidato à presidência nas eleições de 1989, acabou ganhando o carinho de Talmo, que soube de seu desejo de ir fazer uma visita a São Paulo e resolveu colaborar. Mesmo sem ter condições para financiar a ida até a terra natal, ele agradeceu ajuda, mas resolveu não aceitar. Prefere falar de Lorena.
- Acho que se fossem feitos bonecos dele ia vender mais de 4.000 mil facilmente.
O oposto, mais querido jogador do elenco, é garantia de boas vendas. A camisa de número 6 é a de maior saída. Ao menos no shopping popular, que vende "réplicas", como diz Daniel Caires, a preço bem mais em conta do que as lojas oficiais. Durante 15 minutos em seu boxe, quatro pessoas se mostraram interessadas na compra de uma.
- As mais procuradas aqui sempre foram as de futebol, do Brasil e da Argentina. Mas o time de vôlei mudou isso. Vendo de oito a 10 por dia. No dia da semifinal todas as 66 foram compradas. acho que a final deveria ter mais jogos para poder fazer uns aqui. Está sendo boa a presença deles aqui para ajudar na manutenção de várias famílias.

Anna Júlia, uma das Rodriguetes, faz carinho em Rodriguinho, seu jogador mais querido.

E para alimentar novos sonhos também. A proximidade com os ídolos fez despertar o interesse de crianças entre 7 e 14 anos, moradoras de áreas carentes, por aquele esporte do qual sabiam muito pouco. Aos poucos, após uma sequência de vitórias, a procura pelo projeto Viva Vôlei aumentou. Nos seis núcleos já há mais de 600 inscritas. Algumas delas experimentam a novidade com pés descalços. Usam diariamente sandálias ou chinelos. Ainda não têm dinheiro para comprar um tênis. Aos 12 anos, Talia Daiane dos Santos é a líder de uma turma de meninas competitivas e muito falantes. É apontada pelo professor Eduardo Maia como dona de boa habilidade.
- Eu não sabia muito como era esse jogo. Minha amiga me chamou e eu vim. Aprendi aqui. Acho que isso é uma possibilidade para que a gente possa pensar numa carreira. Imagina eu jogando com o Lorena?! - sonha a menina que mora com avó, já que a mãe trabalha como diarista longe do bairro.
Ela é logo repreendida pela tagarela Amanda, que não se conforma com o fato de Lorena ter "nome" de mulher". Que exige a presença dele na quadra nos fundos da escola municipal onde treinam. Que explica com todas as letras para a amiga que "não existe time de vôlei para mulher, ô". Se surpreendeu ao saber que tinha.
Embora só tenham ido uma vez ao ginásio ver um jogo da equipe, as meninas guardaram boa impressão e prometem torcida forte. E vão engrossar o coro no canto de uma das torcidas, conhecida por usar perucas e cantar dois refrões. Para os bons momentos: "Ih, ih, ih, é a força do pequí". Para os maus, falam que o time não come a fruta da terra.

Meninas de projeto sonham com futuro melhor.

VAGA NO ÔNIBUS

O carreteiro Elton Abreu, que na juventude sonhava ser jogador de vôlei, vai poder acompanhar tudo de perto. Foi convidado e conseguiu lugar em um dos ônibus que vão sair da cidade, enfrentar 1.000km de estrada até o Ibirapuera, palco da decisão. Durante toda a semana agências de viagem fizeram pacotes para os interessados em apoiar o time. Uma empresa de ônibus colocou anúncio na TV. Um voo foi fretado para levar patrocinadores e autoridades.
- Passei um tempo desempregado e ir ao ginásio passou a ser uma terapia. Não perdi um jogo. Agora que estou trabalhando, falei a verdade para o meu patrão e ele me liberou para ir a São Paulo. Quero ver a equipe conquistar o título, mas onde já chegou está ótimo. Há mais de 20 anos Montes Claros não aparecia no noticiário em pleno horário nobre. Lorena foi um grande cara, ele acendeu o pavio. Vai ser uma tristeza se realmente ele for embora como andam dizendo aqui pelas ruas. Mas já pensou o Giba ou o Bruninho, jogadores de seleção vindo para cá?


Avenida Sanitária é ponto de encontro no Centro.

Quem não for vai se juntar à multidão na Avenida Sanitária. A mesma que foi tomada por carros e milhares de pessoas quando o time bateu o Cruzeiro. A mesma onde se encontra a pizzaria de Maísa Narciso e Francisco Júnior, que se tornou o quartel general do elenco e o divã de muitos deles. Há quem já sinta saudade da nova rotina. As pequenas Luiza Pacheco, de 4 anos, e Anna Julia, de apenas 2, conhecidas como as Rodriguetes e integrantes do fã-clube do levantador perguntam para as mães quando vai ter uma partida novamente. Diante da resposta, o choro tem sido inevitável.

Para ela e muitos outros. Mas hoje, ao contrário de outros tempos, além de mostrarem orgulho ao dizer que a cidade do Norte de Minas tem as mulheres mais bonitas do estado, que é conhecida por sua indústria têxtil, pela fabricação de insulina e leite condensado, e que tem como personalidades ilustres o antropólogo Darcy Ribeiro e o jogador de futebol Bentinho, os moradores de Montes Claros também podem dizer que têm um talentoso time de vôlei para chamar de seu. (Reportagem: Danielle Rocha/G1)

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