quinta-feira, abril 09, 2009

TEATRO

PEÇAS QUE VOCÊ ENCONTRA AQUI, PELA ORDEM DESCENTE:

l) A Formiga que queria ser cidade e virou princesa

2) Seu marido sabe que você tem outro homem?


3) Como fazer amor em família (videopeça)

4) O dia em que meu corpo morreu (minipeça)

5) Viadagem


A FORMIGA QUE QUERIA SER CIDADE E VIROU PRINCESA

Autor: Reginauro Silva

PRIMEIRO QUADRO

ENTRAM TODOS OS ATORES EM CENA, CANTANDO: "Nós somos a história de Montes Claros/E viemos apresentar/Todos os nossos personagens/Que a Memória vai contar".

(ACABAM DE CANTAR E ABANDONAM O PALCO. ENTRA EM CENA A ATRIZ "MEMÓRIA): - Senhoras e senhores, eu sou a memória de Montes Claros. Sei, de cor e salteado, toda a história desta cidade. Sei, por exemplo, que, para que estivéssemos aqui, hoje, centenas de índios foram sacrificados pela mão do branco. (ÍNDIOS DESFILAM PELO PALCO). Isto aconteceu quando, em 1691, 600 homens partiram de São Paulo em direção a Minas Gerais. Aqui, vinham combater um movimento indígena que intranqüilizava as populações e arrebanhar escravos para o mercado negro... Durante sete anos eles comandaram uma guerra fria (HOMENS BRANCOS ATACAM NEGROS, DANDO MOVIMENTO À CENA, ENQUANTO MEMÓRIA VAI FALANDO), matando e aprisionando os nativos. Os vencidos foram divididos entre os chefões, sobrando 700 para o Alferes Antônio Gonçalves Figueira.

FIGUEIRA (DE UM PULO, ENTRA EM CENA, NERVOSO) - Epa, mexeram comigo! (DIRIGINDO-SE À PLATÉIA) - Eu não falei com vosmecês? Essa Memória não tá com nada. Muito antes dessa história que ela contou aí, eu já conhecia Montes Claros. Se bem que a primeira vinda, à caça de esmeraldas, não foi bem sucedida, não. Nós largammos Fernão Dias sonhando no sertão e volvemos a São Paulo.

MEMÓRIA - Eu acho que a história não é bem assim, não...

FIGUEIRA - Tá aqui meu companheiro (ENTRANDO) Matias Cardoso, que não me deixa mentir.

MATIAS (MONTADO NUM CAVALO-DE-PAU, JUNTAMENTE COM SEU FILHO JANUÁRIO CARNEIRO) - Exatamente. Esta é a segunda experiência expedicionária do Capitão Figueira, que é homem de palavra. Mas, agora, Capitão, cumprida a missão, aprisionado o braço escravo, todos retornaremos a São Paulo. (MEMÓRIA SAI)

FIGUEIRA (RESOLUTO) - Mestre Matias, não conte comigo pra volta, não. Agora eu vou é plantar cana e criar boi!

MATIAS - Mas quem foi que disse a vosmecê que vou voltar, Capitão Figueira? Assunta vosmecê qu'eu cá gosto mesmo é dum peixim assado na brasa e já arresorvi: vou pras barrancas do São Francisco com meu filho Januário Carneiro. Com a proteção divina (TIRANDO O CHAPÉU), vou fundar as povoações de Morrinhos, São Romào, Amparo...

FIGUEIRA - Ora, pois que não Mestre Matias? Essa zona é muito chegada às pastagens e, como sou devoto de um churrasco batuta. por acá eu vou ficando.

MATIAS - Assunta Capitão que na bacia do Rio Pardo tem uma fazenda que dá gosto.

FIGUEIRA - Pois é pra lá que eu vou, santo homem. Vou fundar a fazenda Brejo Grande e montar o primeiro engenho de cana deste sertão brabo.

MATIAS (FELIZ) - Ah, mas ainda hei de provar da cachacinha do Capitão. Claro, Capitão, isso numa ocasião oportuna. Agora, se me permite, vou me arretirar com minha tropa (O "CAVALO" DE MATIAS É "ARREADO" POR JANUÁRIO). Ah, sim, Capitão, vou virar nome de cidade. É... cidade de Matias Cardoso! (TIRANDO O CHAPÉU) - Que Deus te dê uma boa sesmaria, Capitão!

FIGUEIRA - Nós merecemos, Mestre Matias. Nós e o Governador Geral...

MATIAS - Januário, meu cavalo já está arreado?

JANUÁRIO (ENTREGANDO O CAVALO) - Pois não, meu pai. Está aqui.

MATIAS (MONTANDO) - É hora de ganhar estrada. Adeus, Capitão Figueira.

FIGUEIRA - Deus que te acompanhe, Mestre Matias. Adeus, Januário, e vê se olha o velho aí por essas estradas poeirentas.

(ASSIM QUE OS DOIS SAEM, OUVE-SE BARULHO DE ÍNDIOS. CABO FIRMINO, QUE FAZIA FUNDO DE CENA DESDE O INÍCIO, APROXIMA-SE DE FIGUEIRA, ASSUSTADO)

CABO FIRMINO - Que barulho é esse, Inhô Mestre?

FIGUEIRA - Sei não, vamos assuntar.

FIRMINO - Capitão, Capitão, são os índios.

FIGUEIRA - Chama a tropa, homem! Cadê meu trabuco?

(OS ÍNDIOS SURGEM NESTE MOMENTO, TRAVANDO VIOLENTA LUTA COM OS CAPANGAS DE FIGUEIRA)

CAPANGA - Matei um, Capitão. (ASSIM QUE GRITA, O ÍNDIO SE LEVANTA E SAI CORRENDO)

FIGUEIRA - Pega aquele desgraçado pra mim.

(CABO FIRMINO SAI CORRENDO E VOLTA COM O ÍNDIO)

FIGUEIRA - Esses índios não deixam a gente trabalhar pelo progresso do Brasil.

FIRMINO (COM O ÍNDIO DOMINADO) - Não é à-toa que eu sou o homem de confiança do Capitão. Tá aqui o desgraçado, Inhô Mestre.

FIGUEIRA (EXAMINANDO A DENTADURA DO ÍNDIO) - Que raça é essa?

FIRMINO - São os Tapuias, Capitão. Uma raça braba e perigosa. Pela cara, esse aqui deve ter vindo lá das bandas de Grão Mogol.

(OS ÍNDIOS SÃO ARRASTADOS DO PALCO. ENTRA, AFLITA, MEMÓRIA COM UM PAPEL NA MÃO)

MEMÓRIA (ENTREGANDO O PERGAMINHO) - Capitão, Capitão, chegou isso pro senhor. Pelo jeito, foi o Governador Geral que mandou...

FIGUEIRA (SORRINDO) - Deve ser o pagamento...

MEMÓRIA - É, é, só pode ser.

FIGUEIRA (ASSUSTADO) - Meu Deus, será verdade?

MEMÓRIA (TOMANDO O PAPEL PARA LER TAMBÉM) - É verdade, sim, Capitão. Vosmecê acaba de ganhar uma sesmaria de légua e meia de largo por três de comprido, situada nas cabeceiras do Rio Verde. É uma região riquíssima, Capitão. (RECITANDO) Tem aroeira, tem pequizeiro, imburana e pau-preto. Tem siriema e jacu, ouro e malacaxeta.

FIGUEIRA - Mas é verdade, homem?

MEMÓRIA - Claro, santa criatura. Olha, Capitão, na verdade eu acho que vosmecê ganhou foi na Quina, na Sena e na Esportiva de uma vez...

FIGUEIRA - Meu Deus, eu não mereço tanto.

FIRMINO - E tem muié?

MEMÓRIA - Mas é claro, Cabo Firmino. Tem cada índia que dá gosto de fazer besteira (FAZ O GESTO)...

FIGUEIRA (CAINDO NA REAL) - E que dia é hoje?

MEMÓRIA - Hoje é 12 de abril de 1707.

FIGUEIRA - Pois vãobora, Cabo Firmino. Chama a tropa que, agora, nós vamos conquistar esse Norte de Minas.

FIRMINO - Tropa, tropa, o Capitão tá chamando!

MEMÓRIA (ENQUANTO A TROPA "CAVALGA", PERFILADA) - E assim, depois de fundar as fazendas de Jaíba e Olhos D'água, Capitão Figueira vai, agora, estabelecer a Fazenda dos Montes Claros. Agora, tem uma coisa: eles estão alegres assim (A TROPA RI) é porque não sabem que lá só tem formiga... (SAI DE CENA)

(A TROPA ESPREGUIÇA, OUVINDO-SE AO FUNDO, JUNTO COM OS RONCOS, RUÍDOS DE PÁSSAROS)

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SEGUNDO QUADRO

FIRMINO (ABRINDO OS OLHOS) - Dormiu bem, Capitão?

FIGUEIRA (LAVANDO O ROSTO NUMA BACIA) - Dormi nada, homem! Tem cada muriçoca aqui que nem um navio cheio de balas dá conta. Será que a gente não arruma bosta de boi por aqui não?

FIRMINO - Oxente! E bosta de boi é bom para matar muriçoca?

FIGUEIRA - Uma beleza, Firmino. É só deixar queimar a noite inteira e não sobra nem uma dessas seresteiras miseráveis. (FIRMANDO O OUVIDO) - Bem que aquela sujeita falou, Firmino. Eta lugarzinho bonito! Tem até passarim... (DIRIGINDO-SE A OUTRO CAPANGA) Que café mais demorado é esse, homem?

CAPANGA - Tá quase pronto, Inhô Mestre. Firmino, ondé qui tá a rapadura?

FIRMINO (COM AR DE GOZAÇÃO) - Cê ainda é do tempo que fazia café com rapadura? Usa garapa de cana, homem!

CAPANGA (ABRINDO UM EMBORNAL) - Destá, destá, achei, tá aqui.

FIGUEIRA (APONTANDO PARA O HORIZONTE) - Vejam, vejam! Que diabo é aquilo?

FIRMINO - São os montes claros, Capitão!

FIGUEIRA - Montes o quê?

CAPANGA - Montes claros, Capitão! Pois não foi isso que despertou a atenção do Mestre?

FIGUEIRA (IRRITAD0) - Cês tão cegos, diabos? Não tão vendo aquela desgraçada que vem pela estrada dos Veados, não?

FIRMINO - Onde, onde?

CAPANGA - Ué, cumé que ela vei parar aqui?

FIRMINO - É ela mesmo, Capitão. E vem vindo a pé...

FIGUEIRA - Prepara as armas.

MEMÓRIA (ENTRANDO COM UMA BANDEIRINHA BRANCA NA MÃO) - Calma, pessoal! Calma qu'eu sou de paz. O que é isso, Capitão? A memória de Montes Claros já é tão fajuta, tão esquecida, e vocês ainda querem acabar com ela? Vamos devagar...

FIGUEIRA - Abaixem as armas. Cumé qui ocê vei parar aqui nas barrancas do Rio Vieira?

MEMÓRIA - Vim pela sombra, Capitão. Tá um sol danado, mas eu vim pela sombra. Cadê o café?

FIGUEIRA (AO CAPANGA) - Serve café pra essa Maria Moura aí.

MEMÓRIA (TOMANDO CAFÉ) - Gostou da sesmaria, Capitão?

FIGUEIRA - É uma beleza! Tem algumas muriçoquinhas, mas isso a gente arresorve com bosta de boi e a fumaça da prefeitura. Já mandei os homens roçar aquele mangueiro ali (APONTA), que é lá que vou construir o curral. Está vendo aqueles montes?

MEMÓRIA - Claro, claro.

FIGUEIRA - Pois é lá que eu vou fazer minha morada. Aliás, acho que vou chamar isso aqui de Fazenda dos Montes Claros. Gostou do nome?

MEMÓRIA - Fazenda dos Montes Claros? Maravilhoso, Capitão! (ENTREGANDO O CANECO AO CAPANGA) - Olha, Capitão Figueira, isso é nome pra ficar na história. Daqui a pouco começam a chegar boiadeiros, tropeiros, negociantes. Logo logo isso aqui vira uma São Paulo...

FIGUEIRA - Pois eu não quero isso não. Eu quero viver uma vida de paz e tranqüilidade. Nada de progresso. Não é à-toa que eu vim de São Paulo. Aqui, hei de construir o meu paraíso. Meu e dos meus amigos (PUXANDO MEMÓRIA) - Mas... cadê as muié que vosmecê disse que tinha aqui?

MEMÓRIA - Ué, Capitão, tá me achando com cara de Cafetina, é? Eu não sou nenhuma Petrolina, não. Eu acho melhor o senhor cuidar das vacas de verdade. Assim, não vai arrumar chifre nem confusão...

FIGUEIRA - Vosmecê não tá faltando com minha confiança, hein?

MEMÓRIA - Absolutamente, Capitão. É claro que eu não sou chegada num sapato, não, mas o que tem de índia pelada por esses montes claros o senhor não encontra nem na Playboy.

FIRMINO - O Capitão permite minha retirada?

FIGUEIRA - Vai atrás de muié, homem?

FIRMINO - Não, Inhô Mestre. Eu vou é cavar uma privada pra nós evacuar, que esse negócio de fazer no mato é perigoso demais. Dizem que essa região tem muito índio marvado...

MEMÓRIA - E tem muito carrapato também. Cuidado!

FIGUEIRA - Pois que seja breve, Cabo Firmino. E vê se não se intromete com nenhuma indiazinha montes-clarense por aí, que esse gado aqui é todo do Capitão...

FIRMINO - Assim seja, Capitão (SAI DISPARADO, APERTANDO A BARRIGA).

FIGUEIRA (TOMANDO UM SUSTO E CAINDO COM AS MÃOS NA BOTINA) - Mas que diabo é isso?

MEMÓRIA (PEGANDO UMA FORMIGA) - É a saúva, Capitão. Esta região é rica em formigas. Tá vendo aí? (APONTANDO) Tá tudo infestado.

FIGUEIRA (LEVANTANDO-SE, COÇANDO DESESPERADAMENTE AS PERNAS) - Antes de aportar aqui, eu tive em Juramento, um lugar desgraçado pra dar febre. Um tal de impaludismo matou três homens meus e, quando vi que a coisa tava preta, pus os pés na estrada, ganhei esta sesmaria e, agora, aparecem essas desgraçadas pra complicar minha vida...

MEMÓRIA - É assim mesmo, Capitão. Como dizia aquele velho deitado: "Pobre, quando acha uma laranja na estrada, ou tá bichada ou tem marimbondo no pé". No seu caso, o pé é que está cheio, mas é de formiga.

FIRMINO (VOLTANDO) - Capitão, Capitão, a capelinha já está pronta.

MEMÓRIA - Engraçado, o homem saiu pra fazer uma privada e volta dizendo que fez uma capela...

FIRMINO - Mandei colocar uma imagem lá no altar, que é pra Nossa Senhora nos proteger.

FIGUEIRA (DECLAMANDO) - Que Nossa Senhora me dê saúde e disposição pra fazer deste lugar uma terra tão bonita como o luar do sertão.

MEMÓRIA - Mas que bonito, santo homem! O Capitão é tão bom poeta que mereceria uma estátua em praça pública, esculpida pelo grande artista plástico Mário Boy, Cabo Firmino. Mas, Capitão, até quando vosmecê pretende habitar estas paragens?

FIGUEIRA - Assunta que eu já percorri esse Brasil de fora afora e até agora não achei um lugar mais gostoso que este aqui não. O terreno tem salitre, as pastagens são naturais...

MEMÓRIA - E o gado?

FIGUEIRA - O gado pega peso com uma facilidade danada. (ENTUSIASMADO) Eu vou ser o maior criador de gado do Norte de Minas e do Sul da Bahia. Vou ligar o Rio Verde à Bahia, vou fazer uma estrada pra Tranqueira, que é pra dar passagem aos negociantes que vêm pelo São Francisco e (TIRANDO O CHAPÉU), se Deus quiser e Nossa Senhora ajudar, vou fazer disto aqui o maior celeiro de carne pra tudo quanto é siderurgia do país.

MEMÓRIA - Siderurgia, Capitão? O senhor não acha que é muito cedo pra pensar nisso não?

FIGUEIRA - Vosmecê tá duvidando da minha força de trabalho? Escuta que eu durmo calçado que é pra já levantar com o pé na labuta.

MEMÓRIA (DESCONCERTADA) - Claro, claro, Capitão. Só um homem de visão como o senhor conseguiria transformar esse formigueiro da peste num grande centro produtor...

FIGUEIRA (IRRITADO) - Vosmecê não pode falar nesses modos não. Ponha mais respeito nas suas palavras, que o Capitão aqui não é bicho de formigueiro não. E se vosmecê tá achando que eu vou levar desaforo pra casa, vosmecê tá muito equivocada. (MEMÓRIA É AGRARRADA PELOS CAPANGAS, ENQUANTO FIGUEIRA FALA) - Pois fique sabendo, também, que eu já matei homem branco, negro escravo, índio sem-vergonha, já acabei com a raça dos Anaiós e... (AVANÇANDO SOBRE MEMÓRIA, COM O TRABUCO ENGATILHADO)... pra dar um tiro numa rameira qualquer não custa nem um piscar de olho.

MEMÓRIA - Mas, Capitão...

FIGUEIRA - Respeita Montes Claros, fiadaputa!!!

MEMÓRIA (TREMENDO DE MEDO) - Pois não, Capitão, pois não. Eu não falei nada, não... Olha, Capitão, eu amo o senhor...

FIGUEIRA - Senhor, não, vosmecê!

MEMÓRIA - É... é..., eu amo vosmecê, Capitão! E, olha, tem uma coisa que vosmecê não sabe (LIVRANDO-SE DOS CAPANGAS), eu gosto muito de formiga, Capitão. Aliás, eu sou a maior comedora de formigas da região. É bom pras vistas, Cabo Firmino.

FIGUEIRA - Arruma a tropa e vãobora que essa descarada é mais maluca do que eu pensava.

CABO FIRMINO (SAINDO COM A TROPA E FIGUEIRA) - É, Memória, ocê é doida demais.

FIGUEIRA - Vamos lá ver como é que está a capelinha. (SAINDO) - Deixa essa rapariga aí.

MEMÓRIA - Peraí, Capitão, peraí. Ô Cabo Firmino, volta aqui, sô! (PARA A PLATÉIA) - Se é assim que eles querem fazer uma cidade, vão entrar na maior fria do mundo. Esperem só pra vocês verem.

(ENQUANTO FALA, MIGUEL E JOÃO GONÇALVES FIGUEIRA ENTRAM AO FUNDO. MIGUEL VAI À FRENTE, ABRINDO CAMINHO COM UM FACÃO. JOÃO VEM ATRÁS, COM UM TRABUCO, COM O QUAL DÁ UM TIRO EM MEMÓRIA).

MEMÓRIA (CAINDO) - Ai, me acertaram.

MIGUEL (ENCOSTANDO-SE AO CADÁVER) - Acho que cometemos um engano, João Gonçalves. É uma mulher e parece que não é inimiga não.

JOÃO - Tem importância não, mano. Essa cambada é toda sem-vergonha. Deve ser mulher de um cabra safado que está roubando o gado do Figueira. Será que tá morta?

MIGUEL (OUVIDO COLADO AO PEITO DE MEMÓRIA) - Se tá... A alma dela já deve estar pra lá das profundezas do Inferno...

JOÃO - Então, vamos embora procurar o Figueira.

MEMÓRIA (LEVANTANDO-SE) - Como viram, viver naquela época era mais perigoso do que morar no Feijão Semeado ou no Suvaco da Cobra. Matava-se só pra ver o desgraçado cair. Felizmente, hoje, a poluição, a fome, a Aids e o câncer social substituíram o trabuco e a peixeira. Mas, voltemos ao século dezoito. Esses dois que acabam de passar são o Miguel e o João, irmãos de Antônio Gonçalves Figueira. Na realidade, eram quatro os irmãos do Capitão, todos bafejados pela sorte. Aqui, eles incrementaram suas sesmarias e se tornaram possuidores de grandes fortunas, contribuindo para o povoamento da região. Quando o Capitão, já velho e muito rico, resolveu partir para Santos, a Fazenda dos Montes Claros foi entregue a seus agregados e, posteriormente, ao sargento-mor Manoel Ângelo, primo de Figueira. O Capitão morreu e...

CARVALHO (INTERROMPENDO MEMÓRIA) - Bom dia, dona menina. Que Deus a tenha em paz.

MEMÓRIA - Ora, pois vamos chegando meu senhor.

CARVALHO - Por acaso vosmecê conhece por aqui o sargento Manoel Ângelo?

MEMÓRIA - Mas é claro, meu senhor. Não é aquele que, por umas questões políticas, foi deportado pra Angola?

CARVALHO - Não exatamente (OLHANDO PARA OS LADOS E SEGREDANDO) - Olha, aquele que foi mandado expulso pra Angola é o André, um dos oito filhos do Capitão Figueira. Eu me refiro ao primo...

MEMÓRIA - Ao primo? Pois é justamente sobre ele que eu estava falando quando vosmecê chegou. Por acaso, vosmecê é o... o...

CARVALHO - Alferes José Lopes de Carvalho.

MEMÓRIA - Mas que prazer! Alferes José Lopes de Carvalho! Mas, o que o traz aqui?

CARVALHO - Venho em missão de negócios, com o fito de adquirir a fazenda em questão.

MEMÓRIA (PARA A PLATÉIA) - Começou a especulação imobiliária... (VOLTANDO-SE PARA CARVALHO) - Não é pra fazer fuxico não, que eu não sou disso, mas, se eu fosse o senhor, não comprava isso não. Desde que o Capitão rumou para Santos, a fazenda acabou. A sede está em ruínas, os currais foram destruídos, até a capela que Cabo Firmino fez está pelo chão.

CARVALHO - É, minha senhora, talvez vosmecê não saiba, mas com a criação do Julgado do Rio Verde, desvinculando esta parte da Capitania da Bahia, essas terras vão valorizar assustadoramente.

MEMÓRIA - Bom, já que vosmecê insiste... (SAINDO GRITANDO) - Sargento Manoel Ângelo, ô Sargento Manoel Ângelo!

MANOEL (ENTRANDO) - Pronto!

MEMÓRIA - Esse herdeiro do orçamento da União aí tá querendo comprar a Fazenda dos Montes Claros. Vê se faz bom negócio e (GESTICULANDO) deixa a metadinha pra mim...

MANOEL (TIRANDO O CHAPÉU) - Minhas reverências, forasteiro.

CARVALHO - Assim seja, excelência.

MANOEL - Então tenho o prazer de estar falando com o Alferes José Lopes de Carvalho?

CARVALHO - Isso mesmo, excelência. Vim em missão de negócios...

MANOEL - Negócios? Mas é claro. Serve uma cachacinha aí pra nós, Memória.

CARVALHO - Bem lembrado. Uma boa cachacinha sempre estimula os bons negócios.

MEMÓRIA (VOLTANDO COM DOIS COPOS DE PINGA) - Tá aqui a babadinha. Agora, vocês vão lá pra dentro tratar da negociata. (OS DOIS VÃO PARA O FUNDO DO PALCO, ONDE CONVERSAM BAIXINHO) (MEMÓRIA FALA À PLATÉIA) - E assim, o Alferes José Lopes de Carvalho e o Sargento Manoel Ângelo beberam, conversaram sobre gado, algodão, mulher e, lá pelas tantas, já tontos de tanta fubuia, fecharam a transação.

CARVALHO (BÊBADO) - Negócio fechado?

MANOEL (APERTANDO A MÃO DE CARVALHO) - Negócio fechado! (SAEM)

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TERCEIRO QUADRO

MEMÓRIA - O Alferes reconstruiu a Fazenda dos Montes Claros e, logo logo, começou a chegar gente de toda a região...

(ENTRA UM TOCADOR DE VIOLA, QUE É SEGUIDO POR HOMENS E MULHERES QUE, NO PALCO, DANÇAM ANIMADAMENTE. ENCERRADA A DANÇA, BATEM PALMAS PARA O VIOLEIRO. DO MEIO DO PESSOAL SAI O CORONEL JOSÉ PINHEIRO NEVES)

TODOS (PARA O CORONEL) - Já ganhou! Já ganhou! Já ganhou!

PINHEIRO (COLOCANDO A MÃO SOBRE A BÍBLIA SUSTENTADA PELO PADRE AMBRÓSIO CALDEIRA BRANT, QUE ACABARA DE ENTRAR) - Eu, Coronel José Pinheiro Neves, fiel às palavras divinas e ao povo de minha terra, sob o testemunho do padre Ambrósio Caldeira Brant, juro cumprir o meu dever, colocando o bem coletivo acima do particular, honrando (TODOS FAZENDO O NOME DO PAI) Pai, Filho e o Espírito Santo...

TODOS - Amém!

PINHEIRO - ... e prometendo propugnar pelo progresso da Vila de Montes Claros de Formigas! (PALMAS). Como primeiro presidente da Câmara Municipal desta promissora Vila, lutarei - para todo o sempre - no sentido de que seja respeitada a memória do fundador da outrora Passagem de Formigas. Defenderei com brio, ombridade e coragem os ideais pioneiros do Alferes Antônio Gonçalves Figueira...

(UMA EXPLOSÃO ASSUSTA TODO MUNDO. RESSURGE ANTÔNIO GONÇALVES FIGUEIRA QUE, COMO FANTASMA, NÃO É VISTO POR NINGUÉM, À EXCEÇÃO DE MEMÓRIA)

MEMÓRIA - Gente, gente, um momentinho aí. Cês tão vendo aqui? É o Capitão Antônio Gonçalves Figueira.

TODOS (SOLTANDO GARGALHADAS) - Tá louca... É assombração... Que é isso?... Tá de fogo... Cê tá louca, Memória?

MEMÓRIA - Mas é verdade! Coronel?

PINHEIRO - Pois não.

MEMÓRIA - Coronel, eu não estou doida não. O senhor está vendo o Capitão?

PINHEIRO - Só se for Capitão Enéas. Doida eu sei se você está não, viu Memória (RINDO), mas eu não estou vendo ninguém com essa divisa, não. (RISOS)

MEMÓRIA - Seu padre, seu padre, eu juro pela alma do dr. Hermes de Paula: este é o fundador de Montes Claros.

AMBRÓSIO - Você deve ter bebido alguma Viriatinha por aí, Memória.

MEMÓRIA - Eu não sou de cachaçada não, seu padre. É o Figueira, sim. Ele está mudo, mas gesticula que tudo isso aqui é dele.

AMBRÓSIO - Minha filha, se isso não é bebedeira, só pode ser força do mal. No mínimo, você já viu, também, a mulher de branco de Francisco Sá. Passe lá na igreja que vou dar um jeito de exorcizar você.

PINHEIRO - Ô Memória, vamos lá pra casa continuar a solenidade. Eu vou dar uma festa e convido todo mundo pra ir farrear. É perto, ali no Ibituruna. (APLAUSOS) (TODOS SAEM, MENOS MEMÓRIA E FIGUEIRA)

MEMÓRIA - Está vendo o que você foi arranjar pra mim, Capitão? Nem o padre acredita na sua reencarnação.

(FIGUEIRA GESTICULA QUE NADA PODE FAZER)

MEMÓRIA - Vamos lá no boteco do Durães tomar uma pra ver se passa o vexame. (APÓS ATRAVESSAR O PALCO COM FIGUEIRA E CHEGAR AO BOTECO) - Black, ô Black, traz dois venenos aí.

BLACK (SEM ENTENDER NADA) - Duas? Não seria só uma, dona? Peraí que vou chamar o Durães.

MEMÓRIA - Nunca precisou. Eu explico: é... é... são duas mesmo: uma pra mim e outra pruma amiga minha, companheirona do Mercado, que morreu há muito tempo.

BLACK (SERVINDO) - Põe limão?

(FIGUEiRA GESTICULA QUE NÃO)

MEMÓRIA - Uma com limão e outra sem.

BLACK - Meu Deus, o que é isso? O copo está levantando sozinho! (CORRE APAVORADO)

ANINHA TROMBA-DÁGUA (NO OUTRO SET) - Cê viu, Roxa? Dizem que tem uma mulher falando sozinha por aí...

EDNA - Deve ter parte com o capeta...

ANÁLIA - Aqui acontece de tudo, Edna. Dizem que já viram até mula-de-sete cabeças na Rua do Bate-Couro, mulher-de-sete-metros no Morada do Parque e lobisomem no Beco de Zé Coco.

ANINHA - Sei não, viu Anália, mas mulher falando sozinha, só pode ser carência de homem. O que que você acha, Tiana?

TIANA - Cê tem a língua grande, hein? Não é à toa que te chamam Aninha Tromba D'Água...

ANINHA - Mas é verdade, Tiana. Mulher, quando carece de uma (FAZ O GESTO), faz tudo quanto é besteira: fala só, joga no Freitas, vota no Mosquito, urina em pé, bebe pinga com cansação e até deita com Negão da Titia.

EDNA - Cruz credo!

MEMÓRIA (NO OUTRO SET) - Quer dizer que você veio combater o progresso, né Capitão? (FIGUEIRA GESTICULA QUE SIM). Mas o progresso é bom, Capitão (FIGUEIRA GESTICULA QUE NÃO). Tanto é que vamos brindar a elevação do Arraial das Formigas à Vila de Montes Claros das Formigas (LEVANTA O COPO, MAS SEU GESTO NÃO É SEGUIDO PELO CAPITÃO). Ora, ora, brindemos então a chegada do cônego Antônio Gonçalves Chaves! (OS DOIS LEVANTAM OS COPOS)

PINHEIRO (NO OUTRO SET) - A vinda do reverendo só poderá trazer progresso para nossa querida Vila.

CÔNEGO (FALANDO AO CORONEL JOSÉ PINHEIRO) - Com a graça de Deus, haveremos de...

BLACK (ENTRANDO AFOBADO) - Coronel, Coronel, tem uma mulher lá no Relicário falando sozinha e fazendo mais milagres que Zé Fernandes. Imagine, Coronel, que ela levantou um copo no ar sem levantar as mãos e o copo esvaziou-se de uma vez, sem ter ninguém bebendo. O Durães está vermelhinho de medo.

PINHEIRO - Este é um assunto que merece a consideração do nobre vigário. Não é a primeira vez que recebo embaixadas desse tipo. Pode ir embora, Black. Pode deixar que o vigário vai cuidar desse assunto. Agora, precisamos conversar sobre coisas mais sérias.

BLACK (AINDA AFLITO) - Mas Coronel, ela está lá...

PINHEIRO (DEFINITIVO) - Deus que te acompanhe, meu filho. Pede a bênção ao vigário!

BLACK - A bênção, seu padre!

CÔNEGO - Deus que te abençoe, meu filho. Siga em paz.

PINHEIRO - O padre Ambrósio já começara a cuidar do caso, mas não conseguiu tirar as doiduras da mulher, não. Padre Felipe, um dos maiores líderes do Partido Conservador, é muito distraído. Dorme constantemente, mesmo durante as reuniões festivas. Outro dia, o sacristão pegou ele com o rosto ensaboado, de frente para o espelho, navalha na mão e... dormindo.

CÔNEGO (RINDO) - Muito interessante. Mas o Coronel disse que ele é do Partido Conservador?

PINHEIRO - Exatamente, excelência. Espero que o vigário tenha simpatia pelo partido do padre Felipe, que é o partido do Coronel aqui também.

CÔNEGO - Eu sou muito liberal, Coronel Pinheiro. E pretendo disputar uma vaga na Câmara pelo Partido Liberal, o PL.

PINHEIRO (NERVOSO) - Pois não conte com meu apoio, Cônego Antônio Gonçalves Chaves! Nós temos uma tradição que não pode ser jogada por terra.

CÔNEGO - O povo é que vai decidir, Coronel!

PINHEIRO - O povo deve fazer o que for melhor para o Partido Conservador. E o povo já sabe dos prejuízos causados à coisa pública pelo Partido Liberal e pelos anões do Orçamento, tendo à frente o perigoso e prepotente Coronel Francisco Vaz Mourão.

CÔNEGO - Coronel, minha candidatura é irreversível. E espero contar com a compreensão do nobre presidente, pois, nada mais almejo senão o progresso de nossa Vila.

PINHEIRO - Pois eu acho que, antes de se preocupar com política, o vigário deveria cuidar de desfazer certos boatos que correm à boca pequena, principalmente no Quarteirão do Povo...

ANÁLIA (OUTRO SET) - Esse novo padre, aliás, esse vigário que chegou aí não é de enjeitar rabo de saia não

ANINHA - Porra, que cidade é essa que aceita padre amigado com mulher?

EDNA - Mulher??? Padre???

ROXA - É, ele se juntou com Maria Florença e, dizem, não é a primeira vez nem será a última...

TIANA - Pois eu não vejo nada demais nisso. Errado é se ele não arranjasse um belo par de coxas para esquentar os paramentos...

ANINHA (APONTANDO MEMóRIA, QUE GESTICULA COM FIGUEIRA) - Olá, olá, é a doidinha que anda falando sozinha.

EDNA - Cruz credo! Vai ver, vai ver quebrou o resguardo...

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QUARTO QUADRO

SOLDADO (ENTRANDO APRESSADO, SEPARANDO QUEM ESTÁ NO PALCO) - Licença, por favor! Vamos abrir espaço! Licença para o julgamento. (ENTRA O ESCRAVO JOAQUIM NAGÔ, QUE VEM SENDO EMPURRADO, AMARRADO PELAS MÃOS, COM O DORSO NU) (UM TAROL ACOMPANHA O CONDENADO)

SOLDADO (LENDO UM PERGAMINHO) - Por decisão do Conselho de Acusação, a 25 de agosto do ano passado, com base no libelo acusatório lavrado pelo procurador José da Silva Souto, o réu Joaquim Africano, também chamado Joaquim Nagô, natural da cidade de Nagô, na África, deve ser punido com a pena máxima do artigo cento e noventa e dois, no grau máximo, para exemplo dos outros, já que de outra forma não pode haver segurança para os pais de família. O referido réu, Joaquim Africano, vulgo Joaquim Nagô, assassinou, covarde e traiçoeiramente, com três facadas na goela e uma na boca do estômago, em São José do Gorutuba, o pacato fazendeiro Joaquim Antunes de Oliveira, homem de vida santa e pura, sem inimizades, que nunca levantara a mão contra ninguém. Foi nomeado como curador e defensor do réu o Sr. Salvador Alves da Silva, que pediu dispensa por ter sido insultado de uma grande indigestão na noite anterior. Neste caso, é nomeado para substituí-lo o advogado da acusação, João Evangelista Figueiredo. (ABAIXANDO O PAPEL) - O réu tem alguma declaração a prestar?

NAGÔ - Tenho sim!

SOLDADO - Pois que o diga!

NAGÔ (CHORANDO DESESPERADO) - Eu não matei, senhores. Eu sou inocente... Confessei porque fui tratado a ferro e brasa... Eu nunca tive inimizade com meu senhor Joaquim Antunes... Eu nunca tive inimigos... (GRITANDO) Nagô não é de matar... Nagô é de paz com Deus e com os brancos, com Nossa Senhora e os companheiros de cativeiro... (MAIS ALTO) Eu não matei, juro que não matei...

SOLDADO - Com a palavra o representante da Promotoria.

PROMOTOR - Esse negro assassino está faltando com a verdade. Todas as testemunhas depuseram que "ouviram dizer" que ele matou o benquisto líder pecuarista Joaquim Antunes de Oliveira, sob o pretexto de ter levado uma foiçada por não dar água aos cavalos do seu senhor, pai e protetor.

NAGÔ - Não, não, eu não matei... Juro! Eu sou inocente...

SOLDADO - Cala a boca! A defesa tem a palavra!

ADVOGADO (SARCÁSTICO) - Nada impede que meu constituinte seja enforcado, para servir de exemplo aos pais de família e mesmo porque a forca da Vila de Formigas ainda não foi inaugurada. Este dia, 30 de maio de 1836, há de ficar na história como o Dia da Justiça!

SOLDADO - Traz a corda! (RUFO DE TAMBORES. NAGÔ É ENLAÇADO PELA CORDA) - Seu padre, faz a sua parte. (O PADRE ABENÇOA O ESCRAVO. A CORDA É COLOCADA NO PESCOÇO DE NAGÔ MAS, AO SER ACIONADA, ARREBENTA)

CARRASCO - A corda quebrou!

TODOS - Milagre! - É mesmo inocente! - Milagre! - É um santo!

SOLDADO - Traz uma corda mais grossa. (O CARRASCO VAI BUSCAR)

TODOS (GRITANDO) - Queremos clemência! Queremos clemência! Liberdade para Nagô! Liberdade para Nagô! Liberdade para Nagô! Liberdade! Liberdade!

SOLDADO - Silêncio!!! (NAGÔ É NOVAMENTE ENLAÇADO E, DESTA VEZ, ENFORCADO. ESTREBUCHA, LÍNGUA DE FORA, E É CARREGADO PELOS ATORES, QUE MURMURAM UM CANTO SOFRIDO, EM PROCISSÃO)

MEMÓRIA (MOSTRANDO UMA MULHER QUE VEM REBOLANDO) - Olha aí, Capitão, olha aí. É a Aninha Tromba D'Água. (FIGUEIRA AVANÇA EM DIREÇÃO À MULHER) - Peraí, Capitão, peraí. Vamos devagar. Olá, Aninha, como é que vai? (FIGUEIRA DÁ UM BELISCÃO NA BUNDA DE ANINHA)

ANINHA - Sem vergonha! (DÁ UM TAPA NO ESPAÇO) - Vá beliscar sua mãe! (FIGUEIRA CAI SOB O IMPACTO DO TAPA E, PARA SURPRESA DE MEMÓRIA, RECUPERA A VOZ)

FIGUEIRA - Ai!!!

MEMÓRIA (PULANDO DE ALEGRIA) - Capitão, o senhor falou, Capitão! Milagre, milagre, o Capitão Figueira falou! (MAIS VIBRANTE) - Viva a emancipação! Viva a cidade de Montes Claros!

FIGUEIRA (DE QUATRO PÉS) - Cidade? Quer dizer que a formiga já pode andar? sozinha?

MEMÓRIA - Mas é claro, Capitão! A partir de hoje, 3 de julho de 1857, a formiga perde definitivamente sua virgindade... (MEMÓRIA TREPA AS COSTAS DE FIGUEIRA, QUE AVANÇA PARA A QUARTA PAREDE DE QUATRO PÉS)

CÔNEGO (NO OUTRO SET) - E neste momento solene, em que nossa Vila adquire sua emancipação de fato e de direito, não poderíamos deixar de homenagear d. Eva Bárbara Teixeira de Carvalho, que tanto labutou pela criação da portentosa Banda Euterpe Montes-clarense! (ENTRA UMA BANDINHA, QUE USA APENAS AS MÃOS PARA FAZER SUAS EVOLUÇÕES, COMO SE USASSE INSTRUMENTOS DE VERDADE)

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QUINTO QUADRO

ROSENDO DA MUMBUCA (EM CENA, COM UMA GARRAFA DE CACHAÇA NA MÃO, CAMBALEANDO, TROPEÇA NUMA PEDRA) - Ai, ai, ai... que diacho é isso? (APANHANDO A PEDRA) - Quase tira o tampo do meu dedão fora. Ai, ai, ai... é a terceira topada que levo hoje (EXAMINANDO A PEDRA) - Essa bicha tá muito pesada, instrupicou meu dedão, mas eu não vou jogar ela fora não. Vou é levar pro seu Ogusto Orives dar uma olhada... (SAI, AINDA MAIS CAMBALEANTE)

FIGUEIRA (NO OUTRO SET) - Mas será que vai dar certo?

MEMÓRIA - Ora se vai, Capitão. O senhor não voltou a falar com um simples tapa que levou da Aninha Tromba D'Água?

FIGUEIRA - Voltei, sim, mas isso não tem nada a ver com esse seu plano maluco.

MEMÓRIA - Deixa comigo, Capitão. O senhor não vai falar nada. Eu apenas vou apresentá-lo, dizer que o senhor veio da Bulgária, que estudou para ser médico, mas preferiu dedicar-se às artes plásticas, que...

FIGUEIRA - Mas, e o nome? Cumé qui vai ser meu nome?

MEMÓRIA - O nome? Bem, o nome... eu poderia dizer que o senhor se chama Godofredo Guedes, Vanderlino Arruda, Georgino Júnior, Samuel, Raimundo Colares, Biola, Walmir Alexandre, Yara Tupinambá, Márcia Prates, Darlan Rego, Argentino Sidônio, Carlinhos Muniz... mas aí aparece outro pintor com esse nome e as coisas se complicam. É melhor inventar um nome bem diferente, que pai nenhum teria coragem de botar no filho. Que tal Constrantof Cristin?

FIGUEIRA - Não, esse é complicado demais. Nem eu vou conseguir falar...

MEMÓRIA - Pois é assim que é bom, Capitão. Com um nome difícil como este, o senhor vai fazer o maior sucesso. Ah, ah, ah, eu fico rindo só de pensar na cara do Marciano Fogueteiro, na Novena de Nossa Senhora, quando anunciar (CONTORCENDO OS LÁBIOS): e agora vamos soltar uma salva de fogos em homenagem ao maior artista do pincel: Cons-tran-to-f Cris-tin! (RI)

FIGUEIRA - E se eles descobrirem que eu não sei pintar nem um rabo de vaca?

MEMÓRIA - Mas quem disse que o senhor vai pintar rabo de vaca, santo homem? Afinal, o senhor vem trazendo da Bulgária um novo estilo de pintura, desconhecido de todo este país. Basta rabiscar algumas coisa na tela e, com sua enorme capacidade de percepção, com seu nunca discutido intelectualismo, com o sentimento que lhe brota puro da alma, estará emoldurada a mais bela criação de todos os tempos.

FIGUEIRA - Mas cumé que vou pintar, se nem tenho pincel?

MEMÓRIA (CORRENDO PARA BUSCAR ALGUMA COISA) - Não seja por isto, Constrantof. Está aqui todo o apetrecho que vai transformá-lo no mais célebre pintor da história de Montes Claros.

ROSENDO (CHEGANDO À OURIVESARIA DE SEU OGUSTO) - Seu Ogusto, seu Ogusto, vigia que pedra é esta?

OGUSTO (PEGANDO A PEDRA E FAZENDO UMA LIGEIRA INSPEÇÃO) - Rosendo, Rosendo, isto é ouro!!! E ouro do bom, criatura! Deve pesar umas 25 onças... Vale mais de um conto de réis. Rosendo, onde foi que você tirou ela?

ROSENO (ASSUSTADO) - Como? Ouro? Ouro mesmo? Olha, seu Ogusto, pela alma de Reco, o saudoso Ricardo Brasil, que continua presente no coração de nossa juventude, eu juro que não foi roubada não.

OGUSTO - Mas quem foi que disse isso, homem? Eu quero saber onde tem que é pra eu ir buscar umas pra mim...

ROSENDO - Sei não, seu Ogusto, sei não... Aliás, sei sim: foi por acauso. Eu ia andando pela Vargem do Barreiro quando trupiquei nela. Até pensei jogar a disgramada fora...

OGUSTO (GRITANDO) - Ouro! Ouro! Venham ver! (TODOS ENTRAM CORRENDO, TROMBANDO UNS CONTRA OS OUTROS) Rosendo da Mumbuca acaba de descobrir a maior riqueza do mundo! É ouro, minha gente. Dona Genoveva, olha que maravilha!

GENOVEVA (PEGANDO A PEDRA) - Que maravilha, meu Deus! Que tesouro! Preciso entrar em contato com o Paulo César. Ah, eu daria tudo para tê-la pendurada no pescoço...

ROSENDO - A senhora tá falando sério, dona Genoveva?

GENOVEVA - Pois não é, santo homem! Você, por acaso, não pretende negociá-la?

ROSENDO - Quanto é que a senhora dá nela?

GENOVEVA - Assim, agora? Hum, doi 450 réis!

ROSENDO - Pois é da senhora.

OGUSTO - Cê tá louco, Rosendo? Ela vale muito mais...

ROSENDO - Mas eu não quero esse tanto de dinheiro não (DANDO UMA BICADA NA GARRAFA). Olha, seu Ogusto, com 450 réis eu bebo seis meses. Com um conto, eu bebo um ano e tanto... E aí, né, não sobra tempo pra mexer com as nega...

MEMÓRIA - Seu Augusto, é melhor deixar pra lá. É um bobo. Tudo pra beber cachaça. É assim mesmo: quem não tá acostumado com mel, quando come, lambuza.

JORNALEIRO (TRAZENDO JORNAIS SOB O BRAÇO) - Extra! Extra! Edição extra de A PROVÍNCIA, um jornal de segunda! Descoberta mina de ouro em Montes Claros! Minas e mais minas de ouro! Grande riqueza espera os exploradores! (OS PERSONAGENS AVANÇAM SOBRE ELE, CADA UM PEGANDO UM EXEMPLAR. UM DELES COCHICHA AO OUVIDO DE OUTRO E OS DOIS AVANÇAM ALGUNS PASSOS, SORRATEIRAMENTE, E LOGO EMPREENDEM DESABALADA CARREIRA. TODO MUNDO SAI ATRÁS, LEVANDO O JORNALEIRO DE ROLDÃO. FIGUEIRA TENTA IR TAMBÉM, MAS É PUXADO POR MEMÓRIA)

MEMÓRIA - Calma, Capitão, calma! Deixa a corrida do ouro pra essa gente gananciosa. Diz a história que logo logo eles estarão de volta, com uma mão na frente e outra atrás.

FIGUEIRA - Mas não tem ouro mesmo, não?

MEMÓRIA - Tem nada, Capitão, aliás, Constrantof Cristin. Tem nada. É uma ou outra pepita e nada mais. Dizem que vêm mais de mil garimpeiros atrás do ouro de Montes Claros, que até na Rua do Pedregulho tem ouro, mas tudo não passa de sensacionalismo. A esta altura, a rádio Terra já deve estar anunciando que até no Palácio do Bispo tem ouro...

FIGUEIRA - Pois se for mentira, eu te esguelo, tá ouvindo? Afinal, essas terras são minhas e eu não aceito ser passado para trás, não.

MEMÓRIA - O Capitão já conhece os motéis de Montes Claros?

FIGUEIRA - Que diabo é isso, mulher?

MEMÓRIA - É uma espécie de hotel, Capitão, que é usado apenas para ... (COCHICHA AO SEU OUVIDO)

FIGUEIRA - Cê tá louca? Então já não existe mais a zona do Cecé, a Rua Lafaiete, a Rua do Marimbondo...

MEMÓRIA - Claro que não, Capitão. O progresso acabou com aquelas luzinhas vermelhas na porta, como o 49, lembra-se? Agora são só os motéis. E olhe que já são mais de dez. Vai ver o Capitão não tá dando mais no couro?

FIGUEIRA - Me respeita, mulher! Eu estou velho mas não estou capado não...

MEMÓRIA (RINDO) - Não diga que o Capitão tá tomando chá de catuaba...

FIGUEIRA - Eu nem sei do que se trata.

MEMÓRIA - Fazendo-se de besta, hein Capitão? Catuaba é um afrodisíaco usado pelos homens nas famosas garrafadas. Olha, o Urbino Viana sabe de uma fórmula que tem êxito seguro, garantido, batuta mesmo. Basta macerar o conteúdo durante uns dez dias e tomar um cálice em cada refeição.

FIGUEIRA (TOSSINDO SEM JEITO) - Ainda tem buriti por aqui?

MEMÓRIA - Ora, Capitão. Aqui tem quase tudo que o senhor deixou. (RECITANDO) Tem pequi, panan, jabuticaba e buriti,/Araçá, ananais, cagaita e maracujá,/Cajá, pitomba, caju e gravatá,/Manga, mangaba, pinha, jatobá e banana,/Melão, pitanga, tamarino e mamão./Se o Capitão me permite,/Eu posso ainda citar/Que tem até pé de bucha,/Que é pra banho a gente tomar./Tem também erva-cidreira,/Mas, água que é bom,/A gente tem que buscar no Rio Vieira.

FIGUEIRA - É dessa água que o povo bebe?

MEMÓRIA - Tem água de cisterna também, Capitão. Tem cada cisterna que dá água gostosa de se beber. Outras, às vezes situadas na mesma rua, dão uma água insalubre que dá até vontade de vomitar quando bate no estômago.

FIGUEIRA (OLHANDO UMA MULHER QUE VEM REBOLANDO, COM UMA MARMITA NA MÃO E UM VESTIDO QUE VAI ATÉ OS CALCANHARES, SEGUIDA POR DOIS HOMEMS) - Quem é aquela?

MEMÓRIA - É dona Miloca, mulher do relojeiro Cândido Mena Barreto, que foi trazido lá de Curvelo especialmente pra montar o relógio doado por dona Carlota dos Anjos para o mercado.

(A MULHER SOME NOS BASTIDORES E OS HOMENS A SEGUEM, SEMPRE ESFREGANDO AS MÃOS)

FIGUEIRA - E aqueles homens?

MEMÓRIA - Todo dia eles saem atrás de dona Miloca, pra ver as partes íntimas dela. Assim que ela trepa a escada pra levar a comida do marido, que trabalha dia e noite, eles ficam ali, assuntando as coisas da mulher.

FIGUEIRA - Mas esse não é aquele mercado que eu derrubei?

MEMÓRIA - O senhor só derrubou um pedaço, Capitão. Naquela época, ele estava sendo construído por ordens do Honorato Alves. Hoje, quem comanda o município é o major Simeão Ribeiro dos Santos. Se ele soubesse de suas artes contra o progresso, já teria mandado prender o Capitão...

FIGUEIRA - É, mas teve um comerciante, o Sílvio Teixeira, que gostou de minha malineza. Quando o mercado principiou cair, ele gritou: "Que formidável coisa boa!"

MEMÓRIA - Mas o Sílvio só gostou porque ele é do Partido de Baixo, o partido de Camilo Prates, e o presidente da Câmara é o Honorato Alves, do Partido de Cima.

FIGUEIRA - Quer dizer que, sem querer, eu cometi um ato político?

MEMÓRIA - Exatamente, Capitão. De repente, o senhor virou um camilista.

FIGUEIRA - O Camilo é do Partido Liberal, não é?

MEMÓRIA - É, sim.

FIGUEIRA - E o Gonçalves Chaves?

MEMÓRIA - O filho do padre?

FIGUEIRA - Exato.

MEMÓRIA - Gonçalves Chaves é uma das maiores capacidades intelectuais e políticas de Montes Claros. Sua capacidade maior não é partidária, mas comunitária. Não sei se o Capitão sabe, mas ele foi até presidente de Santa Catarina. Quer dizer, é a atencipação histórica de Francelino Pereira, o piauense que vai governar Minas Gerais. Só que, no caso, um mineiro de Montes Claros é que foi dirigir outro Estado.

FIGUEIRA - Mas como é que esse tanto de candidatos, fora os pára-quedistas, arranja votos aqui?

MEMÓRIA - Ora, Capitão, hoje nós somos mais de dois mil eleitores. Montes Claros cresceu muito. Incluindo os escravos, a cidade tem mais de 4 mil habitantes. Juntando todo o município, são mais de 25 mil. Por isso que eu falo: esse negócio de o Capitão lutar contra o progresso não vai adiantar nada.

FIGUEIRA (APONTANDO D. MILOCA, QUE ENTRA PELO MESMO LUGAR, AGORA VESTIDA COM UMA CALÇA COMPRIDA) - Olá, olá, ela mudou de roupa.

MEMÓRIA - Viche, Capitão, vãobora que as madames da cidade estão chegando (ENTRAM CINCO MULHERES, COM AR DE DESPREZO, OBSERVANDO D. MILOCA, QUE CONTINUA INDIFERENTE)

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SEXTO QUADRO

MADAME 1 - Que pouca vergonha!

MADAME 2 - Vê se pode? Uma sirigaita vem lá do Inferno só pra provocar nossos maridos...

MADAME 3 - Será que ela está pensando que isso aqui é Paris, onde se cometem as maiores sem-vergonhices do mundo? Será que ela pensa que é a Cicciolina ou a modelo Lílian Ramos?

MADAME 4 - É, o jeito é nós fazermos um abaixo-assinado pra tirar ela da cidade.

MADAME 5 - Onde já se viu mulher vestir calça de homem em público, apenas para chamar a atenção?

MADAME 2 - Nós precisamos falar com essa prostituta.

TODAS: - Isto mesmo!

MADAME 4 - D. Miloca, faça o favor!

D. MILOCA (COMO SE NÃO ESTIVESSE ACONTECENDO NADA) - Às ordens.

MADAME 1 - É pra dizer pra senhora que é uma indesculpável falta de compostura a senhora andar por aí com esses trajes indecentes!

D. MILOCA - Mas, eu...

MADAME 2 - É uma falta de decoro.

MADAME 3 - Um desafio à moralidade.

MADAME 4 - Um achincalhe às mães de família.

MADAME 5 - Uma inconveniente exposição de formas.

D. MILOCA - Eu acho melhor as senhoras cuidarem de seus maridos, que todo dia vão olhar minhas pernas quando eu subo a escada do mercado.

MADAME 1 - Que atrevida!

MADAME 2 - Ainda não tem vergonha de dizer que os homens é que estão atrás dela...

D. MILOCA - Mas eu tenho que levar comida pro meu marido...

MADAME 3 - Pois leve comida para seu marido, mas não se atreva a servir de sobremesa para os nossos homens.

MENA BARRETO (ENTRANDO PARA APAZIGUAR) - Calma, minhas senhoras. Já está tudo resolvido. A partir de hoje, minha querida esposa continuará trajando indumentária feminina e não mais precisará subir a escada do mercado. Todos os dias eu vou descer para vir comer sua comidinha cá embaixo, não é meu amor?

JOÃO DA MATA (ENTRANDO COM UMA CAIXA PARA ANUNCIAR O FILME DO DIA) - Cinema! Cinema! Hoje tem cinema! (TODOS OS ATORES CERCAM O RAPAZ, QUE CONTINUA ANUNCIANDO) - Não percam! Hoje não está sopa, não...

CURIOSO - Qual é o filme que tá passando?

JOÃO DA MATA - O filme? Ah, o filme. Hoje, o grande filme "Doce Problema", estrelando Tom Mix contra Rolô... Vamos todos ao cinema! Tom Mix contra Rolô...

CURIOSO - E os ingressos?

JOÃO DA MATA - Ingressos? É aqui mesmo (CONDUZINDO OS PERSONAGENS PARA UM CANTO DO PALCO, ONDE O BILHETEIRO DISTRIBUI OS INGRESSOS. TODOS VÃO PEGANDO O PAPELZINHO E SE ASSENTANDO NO PALCO, QUE ENTÃO SE TRANSFORMA NUMA SALA DE PROJEÇÃO. TODOS DE FRENTE PARA A PLATÉIA. COMEÇA A GRITARIA)

- É pra hoje!

- Ô, seu Ducho, vê se arranha esse violino direito, sô!

- Ô Jacó!

- Calma, gente, calma. O Dr. João Alves ainda não chegou.

- Mas que diabo! O filme só começa quando o presidente chega?

- Fiu, fiu...

- Ô Tonico de Naná, sua clarineta não tá com nada!

- Cadê o violão do Gaspar Durães?

MEMÓRIA - Atenção, senhoras e senhores! O Dr. João Alves, digníssimo presidente da CÂmara e Agente Executivo, acaba de chegar. Vai começar o espetáculo! (Dr. JOÃO ALVES ASSENTA-SE, DANDO ORDEM PARA O INÍCIO DA SESSÃO. AS LUZES SÃO TODAS APAGADAS. O FOCO DE UM PROJETOR, MANIPULADO POR MEMÓRIA, É PROJETADO CONTRA A PLATÉIA. A GRITARIA CONTINUA)

- Aí, Tom Mix, dá um couro nesse bandido!

- Epa, sai daí Sinval Amorim!

- Nossa, que violência!

- Sai da frente, Tone Abreu!

- Ô Afrânio, tá pensando que aqui é a Pilangos?

- Pau nele, Rolô!

- Cuidado, Paulo Henrique, senão eles te matam.

MEMÓRIA (INTERROMPENDO OUTRA VEZ, PARA DESAGRADO DA ASSISTÊNCIA) - Senhoras e senhores...

- Ih, a fita quebrou...

MEMÓRIA - Não, não, o Jacó já foi embora. É o seguinte: a Empresa Leopoldo Laborne pede desculpas à distinta platéia, mas vê-se forçada a interromper o espetáculo porque, neste momento, coroa-se de êxito o empreendimento do Coronel Francisco Ribeiro dos Santos. Vinda da Cachoeira do Cedro, acaba de chegar a Montes Claros a luz elétrica que nos faltava (ACENDEM-SE TODAS AS LUZES, INCLUSIVE DA PLATÉIA. OS ATORES SE LEVANTAM EXTASIADOS)

- Luz!? Luz!? Luz!?

- Agora temos luz! Agora temos luz! Agora temos luz!

- Viva o progresso!

- Viva!

- Viva o Coronel Francisco!

- Viva!

- Viva a usina Santa Marta!

- Viva!

- Viva a Cemig!

- Viva!

TODOS (EM CORO) - Abaixo o lampião, abaixo o lampião, abaixo o lampião!

(ENTRA EM CENA A BANDA OPERÁRIA, FAZENDO MÍMICA, SEM INSTRUMENTOS) (AS LUZES DA PLATÉIA SÃO DESLIGADAS)

TIÃO BESTA (DIRIGINDO-SE A DR. JOÃO ALVES) - Dr. João, dr. João, a Banda Operária está fazendo uma passeata e ameaça passar em frente à casa do Camilo Prates.

JOÃO ALVES - Já saiu o resultado, Tião Besta?

TIÃO BESTA - Já sim. O último voto acaba de ser apurado. O Camilo Prates foi eleito deputado federal (VAIAS). Tem mais: o Honorato Alves ganhou com maior margem de votos (APLAUSOS)

JOÃO ALVES (DISCURSANDO) - Mais uma vez está confirmado o predomínio do Partido de Cima sobre o Partido de Baixo. Mais uma vez os Cascudos dão uma lição nos Chimangos. Está salva a República, está salva a honra do Partido Conservador. Saudemos a vitória do dr. Honorato José Alves! Viva o dr. Honorato!

TODOS - Viva!

CARLOS (GRITANDO DO FUNDO DO PALCO) - Vocês querem parar com essa baderna na frente da minha casa?

TIÃO BESTA - É o Carlos, filho do dr. Camilo Prates.

MULHER 1 - Oxente, ancê pensa que é o dono da cidade?

CARLOS - Peço aos senhores que não perturbem o sossego do nosso lar. Meu pai foi eleito também e nem por isso colocou a Banda Euterpe na rua.

JOÃO ALVES - Cada um comemora à sua maneira...

MULHER 2 - Quem pode, pode, quem não pode, sacode...

CARLOS - Peço que não insultem o meu pai!

MULHER 3 - Viva o dr. Honorato!

TODOS - Viva!

CARLOS - Ou vocês param com isso ou vão levar chumbo na cara! (APROXIMA-SE NERVOSO, SOB VAIAS. A FESTA CONTINUA)

- Viva o dr. Honorato!

- Viva!

- Morra o Camilo Prates!

- Morra!

- Viva os Pelados!

- Viva!

- Morra os Estrepes!

- Morra!

- Viva os Cascudos!

- Viva!

- Morra os Chamangos!

- Morra!

(TIROS RESSOAM NO MEIO DA ALGAZARRA, VINDOS DOS BASTIDORES) (QUATRO PESSOAS MORREM E SETE FICAM FERIDAS. HÁ UM LIGEIRO BLACK-OUT. TODOS SAEM)

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SÉTIMO QUADRO

MEMÓRIA (LENDO UM JORNAL, AO LADO DE FIGUEIRA) - Figueira, olha o que está dizendo a Gazeta do Norte: quatro pessoas morreram e sete ficaram feridas num tiroteio entre os Chimangos e os Cascudos. Engraçado é que tanto o Honorato Alves como o Camilo Prates mandaram telegramas ao governador Silviano Brandão pedindo proteção...

FIGUEIRA - E ele vai mandar?

MEMÓRIA - Vai nada... No fundo, isso não passa de mais uma futrica política. O Camilo é muito vivo: tem a astúcia do felino, a treita da lebre e a coragem de um tamanduá em mato fino. O Honorato não dá por menos: é capaz de dar nó em pingo d'água e ainda amarrar as pontas... Quer dizer, no fim, é tudo farinha do mesmo saco.

FIGUEIRA - O que diz mais aí?

MEMÓRIA (MOSTRANDO NO JORNAL) - Olha, essa é boa. Vai chegar a Montes Claros...

CARLOS CÂMARA (ENTRANDO ESPAVORIDO) - Gente, gente, vãobora pra casa! Não convém vocês ficaram aqui, não. Tá vindo um monstro aí que eu nunca vi na vida. Vem vindo perto do Grupo Gonçalves Chaves, nesta direção. É uma coisa horrorosa! Vem rodando sozinho e bufando feito boi brabo. Vãobora, pessoal! Vãobora que a coisa não é de brincadeira, não.

FIGUEIRA - Carlos Câmara, o que fez tanto assombro em você assim?

CARLOS CÂMARA - É um bicho que anda sozinho, pra frente e pra trás, sem precisar de nenhuma junta de boi pra puxar.

MEMÓRIA (RINDO) - Que bicho que nada, seu boboca. É o caminhão que o Capitão José Augusto de Castro comprou pra puxar material para a construção do prédio da cadeia.

FIGUEIRA - É o progresso?

MEMÓRIA - Claro, Capitão! É o progresso que continua chegando a Montes Claros, com seus efeitos multiplicadores e suas variadas formas de conforto. O caminhão é apenas o começo. Daqui a uns tempos, esta cidade vai ter mais carros que carreata de Jairo Ataíde.

FIGUEIRA - Pois eu não aceito isso não. Se chegar aqui, eu dou um tiro nele...

CARLOS CÂMARA - É o fim do mundo!

MEMÓRIA - Olha, Capitão, o senhor já derrubou um pedaço do mercado, já pôs fogo na fábrica do Cedro, já espalhou a peste bubônica, mas isso eu não admito não. Montes Claros, hoje, é bem diferente daquele formigueiro que o senhor deixou aqui.

FIGUEIRA - Mas isto é um insulto aos meus ideais.

MEMÓRIA - Montes Claros já não lhe pertence, Capitão Figueira. Montes Claros é do povo. E o povo quer o progresso!

FIGUEIRA - Ih, você está falando igualzinho a Wílson Cunha e Humberto Souto.

CARLOS CÂMARA (APONTANDO A RÉPLICA DO CAMINHÃO FORD QUE VEM CHEGANDO, ACOMPANHADA POR UMA MULTIDÃO) - Olha, olha, lá vem o monstro! (O PERSONAGEM QUE REPRESENTA UM CAMINHÃO VEM BVZINANDO E DÁ UMA FREADA, PARA DELÍRIO DOS QUE O ACOMPANHAM EM FILA)

JOSÉ AUGUSTO DE CASTRO - Agora, Montes Claros entra definitivamente na era do automóvel. Este caminhão, com capacidade para 1.500 quilos, custou quase quatro contos de réis, mas vai acelerar demasiadamente a construção do prédio da cadeia e do fórum. Com ele, Montes Claros se lança à frente das principais cidades mineiras, inclusive nossa velha rival Teófilo Otoni (PALMAS).

FIGUEIRA (APONTANDO UM REVÓLVER PARA O CAMINHÃO) - Essa desgraça vai ser a perdição da família montes-clarense. Nossos filhos rolarão mortos sob suas rodas. Milhares de feridos serão levados aos hospitais, de onde sairão inválidos. Seus bancos serão transformados em sedutores de moças donzelas. Sua buzina explodirá os tímpanos de minha gente e aumentará a angústia coletiva. Sua fumaça poluirá a doce atmosfera do sertão feito puro. (É AGARRADO E LEVADO PARA OS BASTIDORES)

J. A. CASTRO - É um louco, mais um Requeijão de Salinas que aporta em nossa cidade. Agora, o escritor Ciro dos Anjos vai fazer uma vaquinha para o passeio de ida e volta aos Paus Pretos (CIRO SAI COLHENDO O DINHEIRO DE CADA UM. EM SEGUIDA, O CAMINHÃO SAI, FORMANDO ATRÁS DELE UMA FILA MUITO ALEGRE E ENTUSIASMADA)

TODOS - Viva o caminhão, viva o caminhão, viva o caminhão...

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OITAVO QUADRO

TIBURTINA (ENTRANDO EM CENA, AO LADO DE D. DURUTA) - Que vestido bonito, Duruta!

DURUTA - Não é muito lorde, não, Tiburtina, mas eu mandei trazer do Rio de Janeiro.

TIBURTINA - Mas pra que tanta chiqueza, mulher? Se nós temos aqui costureiras como a Nazinha, Deolinda, Neide Lima, Suzana, Oneide Torres... Não havia necessidade de fazer fora, não. Vai ver, ficou um absurdo.

DURUTA - Ficou em mais de dois contos de réis, mas não é todo dia que a gente tem oportunidade de participar de uma festa como a de hoje. A inauguração do trem-de-ferro vai livrar Montes Claros do atraso. Festa mais luxuosa só mesmo a das Personalidades do Ano.

TIBURTINA - Pois o meu é todo de cetim e ficou muito mais barato. Quem fez foi dona Maria, mulher do Novaisinho e mãe do Perereca.

DURUTA - Sabe duma coisa, Tiburtina? Para a festa de hoje, tudo veio de fora. Os doces, que d. Alda faz tão bem, vieram de Belo Horizonte. Desprezaram a rica culinária de Duca e Nazaré e a comida chinesa da Fatinha e foram buscar uns pratos com nomes arrevezados para o banquete. Daqui mesmo só tem a Banda Euterpe. Até os fogos, que poderiam ser comprados em Mirabela, vieram de Santo Antônio do Monte. (ENQUANTO FALA, OUTROS PERSONAGENS VÃO CHEGANDO, VESTIDOS A RIGOR, OUTROS COM CHAPÉUS E GUARDA-CHUVAS)

TIBURTINA - Você foi à festa na casa de Sebastião Sabiá?

DURUTA - Tava uma cachaçada dos capeta. Lá pelas tantas fizeram uma seresta, onde deram vivas ao Ministro Francisco Sá, a Augusto Catoni, ao dr. Demósthenes Rocket e até apelidaram Bocaiúva de Quilômetro 1.045...

TIBURTINA - Vai ver esqueceram de homenagear os engenheiros...

DURUTA - Ah, tinha me esquecido. O Coronel Antônio dos Anjos mandou fazer três escudos com letras de ouro para colocar na estação: um com o nome de Francisco Sá e os outros dois em homenagem aos engenheiros Pires e Albuquerque e Ajax Rabelo.

MANÉ 400 (ENTRANDO EM CENA E APONTANDO PARA O HORIZONTE) - Olá, olá, o Ministro Francisco Sá vem vindo a pé! (TODOS OLHAM NA DIREÇÃO APONTADA, ONDE NÃO VÊEM NADA. MANÉ BATE COM O INDICADOR NO GOGÓ E DÁ UMA GARGALHADA ESTRIDENTE) - Olalaica, olalaica...

COORDENADOR (ENTRANDO NO OUTRO LADO, JUNTAMENTE COM A CARAVANA DO MINISTRO) - Senhoras e senhores, temos o prazer de receber o Ministro da Viação do Governo Arthur da Silva Bernardes, o grande amigo de Montes Claros, dr. Francisco Sá (PALMAS. O MINISTRO SAI DA RÉPLICA DE UM TREM-DE-FERRO, FORMADA POR TRÊS OU QUATRO ATORES. O COORDENADOR DA FESTA PROSSEGUE). E após a saudação ao Ministro, feita tão brilhantemente pelo ilustre deputado Camilo Prates, vamos ouvir Polidoro Figueiredo, autor de belo poema em homenagem ao maior dia de Montes Claros. (PALMAS E VIVAS)

POLIDORO (DECLAMANDO):

- "Agora, sim, terra sertaneja,

Nova seiva de vida já poreja,

E da locomotiva o grito acode,

Do passado o torpor bate e sacode. (PALMAS)

Vai aumentar a farta sementeira;

Os rebanhos do campo e da lareira;

As chamas do conforto e da alegria. (MAIS APLAUSOS)

Há no espaço mais notas de harmonia e novas esperanças.

O centro está marcado - é Montes Claros,

A princesa, o milagre do sertão,

Como o chamou dos filhos seus preclaros,

O mais ilustre - de alma e coração".

TODOS - Muito bem! Viva! Salve Polidoro! Salve a Central do Brasil!

COORDENADOR - Chegou o grande momento. Ouçamos, no silêncio contido da alma sertaneja, aquele que foi o maior benfeitor de Montes Claros. Com a palavra nosso melhor amigo, o Ministro Francisco Sá! (PALMAS)

FRANCISCO SÁ - "Existem prazeres na vida que, de tão intensos, constumam ser dolorosos..."

TODOS - Ai!

FRANCISCO SÁ - "A guerra está vencida. Hoje, ainda de longe, eu senti a alma da gente montes-clarense ao avistar, do comboio que invade o sertão, a pequenina igreja dos Morrinhos, atalaia avançada dos povos cristãos (PALMAS). Montes Claros, coração robusto do sertão mineiro, eu mesmo não te vira e já te amava, em teu nome, em tua tradição, em teus homens, em teu destino"...

MANÉ 400 - Será que ele é cego?

FRANCISCO SÁ (FINGINDO QUE NÃO OUVIU) - "Eu não havia recebido ainda, como ontem e hoje recebi, a impressão de tua beleza, esplendor destes dias de ouro, com que me acolhe o encanto de tua hospitalidade, e já minh'alma estava presa à tua fortuna. Deste mesmo céu, que é a glória de teus dias e a doçura melancólica de tuas noites, desceram as primeiras bênçãos, que me iluminaram o caminho da vida e que, espero em Deus, hão de ser, através das sombras da reminiscência final, a derradeira claridade de meus olhos." (A MULTIDÃO SE ALVOROÇA. ALGUNS CHORAM DE EMOÇÃO, OUTROS BATEM PALMAS. O MINISTRO É ABRAÇADO E BEIJADO E, FINALMENTE, CARREGADO NOS OMBROS)

COORDENADOR - Vamos agora à festa do lastro. Todos estão convidados para o banquete. Vamos todos ao banquete!

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NONO QUADRO

TIBURTINA (EM CENA COM JOÃO ALVES. ELA FAZ TRICÔ E SEU MARIDO, MÉDICO, EXAMINA UM PACIENTE) - Meu bem, não tô gostando nada desse negócio de você assumir a chefia da Aliança Liberal.

JOÃO ALVES (EXAMINANDO O PACIENTE) - Mas, Tiburtina, nós temos que defender os ideais e a fibra da gente mineira. Você acha que é correto o Washington Luís querer impor um fiadamãe lá de São Paulo como seu sucessor na presidência da República? Se fosse pelo menos a Erundina... E que dizer, então, desse tal de Melo Viana pra governar nosso Estado?

TIBURTINA - Claro que não, João Alves. Eu sei que suas intenções são boas, mas já estão dizendo por aí que você soltou o folheto só para impedir uma grande recepção a Melo Viana...

JOÃO ALVES - Deixa eles falarem... O importante é minha consciência (DESPEDINDO O PACIENTE E ENTREGANDO-LHE UM FOLHETO). E se mandei soltar o boletim é justamente pra evitar que os ânimos se exaltem no 6 de Fevereiro.

TIBURTINA - Mas você acha que os conservadores vão ficar parados, de braços cruzados, esperando a banda passar? Assunta que...

URSINA (ENTRANDO) - Bastarde seu João, bastarde cumadre Tributina.

TIBURTINA - Boa tarde!

JOÃO ALVES - Mas que prazer em recebê-la, Siá Ursina. A senhora veio consultar?

URSINA - Eu vim aqui ontá ancê, fazê umas queixa qui o Ivan Guedes e o Paixão mandou... Inhantes, tive na farmaça de Maro Versiani, mas também ele me aconseiou percurá o doutore Santo ou o sinhô...

JOÃO ALVES - Qual é o mal da senhora?

URSINA - Eu nem sei cumé qui tô viva. Sofro da mãe do corpo, intalo e dore de pontada. Tenho também fogo nas urina. Me parece qui eu tem é uma inscanicença ricuída, com uma caminhação cumpricada e uma dore de istambo véi (ARROTA). Arroto choco. Num falano com pouco insino, cum quarqué dicumezim eu fico uma sumana sem ir no mato (COSPE). Tem dia qui manheço numa nevragia insepultável: num posso vê labôro qui dou acesso...

JoÃO ALVES - Já entendi, Siá Ursina, já entendi. Vou cuidar de passar umas amostras grátis pra senhora. Fica aí trocando um dedo de prosa com a Tiburtina que eu vou lá buscar. (SAI)

TIBURTINA - E a velha sua mãe?

URSINA - É aquelas queixa véia de sempre, cumadre Tributina: quemadêra, batimento pru dentro, furmigueiro no corpo, medo na cabeça... Na sumana, ela cumeu uma carne de porco mei passada... qui essa véia ficou ruim dum jeito! Perdeu a suspiração e a fadigação muntou (RESPIRANDO COM DIFICULDADE). Eu anté falei: e essa véia qui num manhece?

TIBURTINA (ASSUSTADA) - Morreu?

URSINA (FAZENDO O SINAL DA CRUZ) - Salve Rainha da Guarda, cumadre, qui ela inda tá na labuta. Foi só ispritação minha. Aí foi reméido e mais reméido; me insinaro dá pra ela uma dose de carbureto; dispois dei um chá de adjunto-de-horta com treis pingo de azeite doce. Miorou... Mais ela num tem sufrimento de ficá na cama... num leva nada dessa vida (FAZENDO VÔMITOS), não tem apitite pra cumê (JOÃO ALVES VOLTA). Será qui ela pode tomá chaculate de leite de bode? (VIRANDO-SE PARA JOÃO ALVES) Não faz mal não, doutore?

JOÃO ALVES - Leite de bode?

URSINA - Pois, antão, será qui ela pode tumá chaculate de leite de bode?

JOÃO ALVES - Pode sim, mas dê pra ela esse xarope também (ENTREGANDO). Toma, esse aqui é pra senhora sarar a disenteria.

URSINA - O sinhô é um santo, doutore. Quanto é qui foi o gasto?

JOÃO ALVES - Ora, Siá Ursina, se eu não cobro de pessoas estranhas, ia cobrar logo da comadre? É nada não.

URSINA - Pois qui São Judas Tadeu abençoa o doutore, a cumadre Tributina e os minino todo. Adeusinho, doutore. Adeusinho, cumadre. (SAI)

TIBURTINA (LENDO UM JORNAL QUE ACABARA DE RECEBER) - Olha, João, a Gazeta do Norte assumiu mesmo a defesa da Concentração Conservadora. São uns canalhas! O Ari passou pro lado deles e está dizendo aqui que o Conde Dolabella Portela vai mandar um especial de Bocaiúva, carregado de trabalhadores, todos armados até os dentes. Acho melhor a gente ficar prevenida, com uns cabras protegendo a casa.

JOÃO ALVES - O Melo Viana vem sozinho?

TIBURTINA - Não, quem chefia a caravana é o Carvalho de Brito. Vem também o Fleury da Rocha, secretário de Melo Viana. Fora os puxas... Pode deixar, João, nós vamos mostrar a eles com quantos paus se faz uma canoa...

JOÃO ALVES (SEGUINDO TIBURTINA, QUE SAI RESOLUTA) - Calma, minha nega, calma!

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DÉCIMO QUADRO

((EM CENA MARA, AYRAN, VIRGÍNIA E MARISA, QUATRO MOÇAS DECENTÍSSIMAS, QUE DESFILAM PELA RUA QUINZE)

MARA - A cidade tá diferente hoje, né Ayran?

AYRAN - Tá todo mundo envolvido nesse tal Congresso do Algodão.

MARISA - Congresso do Algodão, nada, que meu paínho falou que esse tal de Melo Viana vem aqui só pra fazer propaganda política.

VIRGÍNIA - Logo hoje que eu saltei o muro do Colégio Imaculada pra vim ver o movimento na Rua Quinze...

MARISA - Ah, hoje vai ter seresta na casa de Basílio de Paula, com João Chaves na flauta, Sinval Fróis no violão, Zé Coco no cavaquinho e Lauzinho na guitarra. Fora as vozes de Dulce Sarmento, Niquinho Teixeira, Pedro Boi e Fatel...

AYRAN - A cidade tá crescendo... até Araci de Almeida foi contratada pra cantar no Clube Minas Gerais...

VIRGÍNIA - Será que você não tem vergonha de lembrar daquele cassino não, Ayran? Aquilo é coisa de homem beberrão e mulher sem pudor.

MARA (MOSTRANDO DUAS MULHERES QUE PASSAM AO LARGO) - Marisa, Virgínia, Ayran (COCHICHANDO): cês sabem que Montes Claros tem 1.500 mulheres da vida matriculadas na polícia? É... e todas atraídas pelo (GESTICULA) trem-de-ferro...

MARISA - Ih, Mara, você tá tão sem assunto. Vamos ver o chafariz do Largo da Matriz?

VIRGÍNIA - Ver o quê? Eles inauguraram o chafariz e até hoje não saiu uma gota d'água... (SAEM)

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DÉCIMO PRIMEIRO QUADRO

MELO VIANA (ENTRANDO CARREGADO POR UMA CARAVANA, AOS GRITOS DE "VIVA MELO VIANA", "VIVA MELO VIANA") - Meus correligionários, venho visitar os irmãos do longínquo rincão de Minas, em nome de sua excelência o dr. presidente Washington Luís, mais para rever os amigos do que à caça de votos. Sou, de fato, candidato ao governo de Minas, lançado que fui pela Concentração Conservadora, mas nada mais almejo, nesta bela cidade, senão o sucesso do já vitorioso Congresso do Algodão. (PALMAS) (JOÃO ALVES APARECE AO FUNDO E FICA OBSERVANDO).

CARVALHO DE BRITO - Agora, vamos marchar em direção ao centro da cidade (OS ATORES SE ENFILEIRAM ATRÁS DELE, QUE SAI GRITANDO) - Quem vai fazer a felicidade do Brasil?

TODOS - É Júlio Prestes, é Júlio Prestes!

CARVALHO - Viva o dr. Júlio Prestes!

TODOS - Viva, viva, viva!

CARVALHO - Quem vai fazer a felicidade de Minas Gerais?

TODOS - É Melo Vianna, é Melo Vianna!

CARVALHO - Viva a Concentração Conservadora!

TODOS - Viva, viva, viva!

CARVALHO - Morra a Aliança Liberal!

TODOS - Morra, morra, morra! (JOÃO ALVES ADIANTA-SE. TODOS SE CALAM. MAS ALGUÉM JOGA UM TRAQUE A SEUS PÉS).

JOÃO ALVES (LEVANTANDO O BRAÇO) - Viva a Aliança Liberal! (VAIAS)

(QUANDO O TRAQUE EXPLODE, JOÃO ALVES TOSSE SECO, LEVA A MÃO À BOCA E FAZ QUE VAI CAIR, EMBORA NÃO ESTEJA FERIDO. SEUS AMIGOS, QUE ESTÃO DENTRO DE SUA CASA, NÃO ENTENDEM O INCIDENTE E COMEÇAM A DISPARAR SARAIVADAS DE BALAS. OS MANIFESTANTES CORREM, MAS AINDA ASSIM MORREM: Dr. RAFAEL FLEURY, JOÃO SOARES DA SILVA, MOACIR DOLABELA E D. IRACI DE OLIVEIRA NOVAIS. UM MENINO DE 12 ANOS, QUE OLHAVA A PASSEATA, TAMBÉM CAI MORTO. HÁ INÚMEROS FERIDOS, INCLUSIVE MELO VIANNA, QUE LEVOU TRÊS TIROS).

JOÃO ALVES (GRITANDO PARA O SEU GRUPO) - Parem com isso, parem com isso! Há mulheres, há crianças! Pelo amor de Deus, parem! (CESSA O TIROTEIO).

TIBURTINA (ENTRANDO AFLITA) - E agora, João? E agora?

JOÃO ALVES - O Melo Viana está vivo ainda. Vamos tratar dos feridos. (OS CORPOS SÃO CARREGADOS POR ELE E SEUS CORRELIGIONÁRIOS).

TIBURTINA - E os mortos?

JOÃO ALVES - Os mortos? Ah, os mortos... Deus toma conta.

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DÉCIMO SEGUNDO QUADRO

PARTURIENTE (ENTRA DO OUTRO LADO, GEMENDO E LAMENTANDO, A MÃO APERTANDO A BARRIGA GRÁVIDA) - Ai, ai, ai. (FINGE BATER NUMA PORTA, A PORTA DA SANTA CASA. APARECE UMA MULHER) - Minha senhora, eu vou ter um filho! Não sou daqui, venho de longe e não tenho onde me agasalhar. Peço-lhe que me dê abrigo.

EMPREGADA - Trouxe a guia?

PARTURIENTE - Não senhora. Cheguei de fora ainda há pouco...

EMPREGADA - Então, paciência! É impossível atendê-la.

EMPREGADA - Disseram-me que era aqui a Santa Casa de Caridade...

PARTURIENTE - E é, sim. Mas eu sou uma simples empregada e apenas cumpro as ordens que me dão. Nada posso fazer.

PARTURIENTE - Pelo amor de Deus... (A EMPREGADA, EM RESPOSTA, VIRA-LHE AS COSTAS E SE RETIRA. A PARTURIENTE VOLTA A CHORAMINGAR, DESOLADA. DEBRUÇA-SE NO CHÃO E COMEÇA A CHORAR BAIXINHO).

IRMÃ BEATA (CHEGANDO SORRATEIRAMENTE, PARA ACUDIR A MULHER) - Não se aflija, pobre mulher! (LEVANTANDO A PARTURIENTE). Entre, mãe desamparada! (CARREGANDO-A). Nós vamos atendê-la. (HÁ UM LIGEIRO BLACK-OUT, TEMPO SUFICIENTE PARA A PARTURIENTE LIVRAR-SE DO "FILHO", QUE AGORA ESTÁ NO SEU COLO, CHORANDO).

MADRE (ENTRANDO EM MEIO AO CHORO DO RECÉM-NASCIDO) - Como lhe foi possível ter um filho aqui dentro?

PARTURIENTE (AMEDRONTADA) - Foi uma bondosa Irmã que atendeu às minhas súplicas e me abriu a porta.

MADRE - Disse... uma Irmã?

PARTURIENTE - Sim, sim, uma Irmã.

MADRE (APONTANDO PARA UMA IRMÃ QUE ESTÁ AO SEU LADO) - Foi esta aqui?

PARTURIENTE - Não senhora. A que me atendeu era gorda, muito clara, de olhos azuis.

MADRE (APONTANDO PARA UM PONTO IMAGINÁRIO) - Foi aquela daquele retrato ali?

PARTURIENTE (COMOVIDA) - Foi esta sim! Deus que a abençoe. Foi esse anjo que teve piedade de mim, que me recolheu, que me ajudou, que me confortou.

MADRE (APAVORADA) - Mas essa santa criatura já não existe. Essa é a Irmã Beatriz, a Irmã Beata, e ela já morreu... (LUZ APAGA NESTE SET E ACENDE NO OUTRO, PARA A INAUGURAÇÃO DA RÁDIO).

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DÉCIMO TERCEIRO QUADRO

CHICO PITOMBA (ENTRANDO COM UM VIOLÃO ÀS COSTAS, AO LADO DE MANÉ JUCA, ENQUANTO OUTROS ATORES SE POSTAM NUM LADO DO PALCO, OUVINDO UM RÁDIO) - Rê, rê, cumpadre!

MANÉ JUCA - Rê, rê, cumpadre!

CHICO PITOMBA - Estamos aqui para a inauguração da Rádio Sociedade Norte de Minas, um empreendimento de...

MANÉ JUCA - ... Jair de Oliveira.

CHICO PITOMBA - E quem não tiver rádio em casa...

MANÉ JUCA - ... é só ir lá na Alfaiataria Santos Dumont, de Jacinto Fagundes, dono do primeiro rádio receptor de Montes Claros.

OUVINTE (FALANDO PARA O GRUPO QUE OUVE O PROGRAMA) - O progresso chegou pra valer. Já temos telefone, já temos água potável, luz e ruas calçadas. Hoje, temos rádio também. Só falta o Ateneu entrar no campeonato mineiro...

CHICO PITOMBA - Ouvintes da Rádio Sociedade Norte de Minas, muito boa noite.

TODOS - Boa noite!

CHICO - Com a graça de Deus, estamos iniciando a apresentação de...

MANÉ - Alma Cabocla.

CHICO - Um programa dedicado à Catedral de Nossa Senhora Aparecida, o cartão postal da cidade, e ao nosso sempre querido Clube Montes Claros.

MANÉ - Cê viu, cumpadre? O jornal "O Malho", do Rio de Janeiro, fez uma caricatura de dona Tiburtina atrás de um toco, com um trabuco na mão e um bornal de farinha de rapadura nas costas.

CHICO - Povo perverso, né cumpadre? Logo dona Tiburtina, uma alma santa e caridosa.

MANÉ - É, cumpadre, mas depois da Revolução de 30, uns cabras da peste andaram torturando muita gente lá no cemitero. E ainda empastelaram a "Gazeta do Norte", uai!

CHICO - Ora, cumpadre Mané Juca, era só pra satisfazer a santa mulher. Cê não tá vendo que ela não ia mandar fazer uns desatinos desses?

MANÉ - Vamos mudar de assunto, cumpadre Chico Pitomba. Que qui é qui nós vai cantá?

CHICO - Deixa comigo, cumpadre Mané Juca. Eu puxo e dou o breque aqui na viola. (CANTANDO, ENQUANTO OS OUVINTES DANÇAM DO OUTRO LADO) - "Cumpadre, ancê que é fino,/Pica mais que arfinete,/Responda no sufragrante,/Que eu lhe dou um sabonete:/Pru qui é qui nesta cidade/Se sorta tanto fuguete?"

MANÉ (TAMBÉM CANTANDO) - "Os fuguete de Montes Claro/Istora em quarqué função:/Quando vence o futebó/Ou quando hai coroação/Se chega a cocaína; /Quando se ganha inleição;/No dia dos viajante/Ou quando sai prucissão;/Nas fuguêra de São Pedro,/Santo Antone e San João".

CHICO - Bunito, cumpadre! Daqui a pouco o Rui Muniz de chama pra TV Pequi, pra mode ancê fazê as modinha do forrobodó...

MANÉ - Quer o quê, cumpadre! Prefiro fazê vestibular na Unimontes, passar em todos os cursos ou entrar no Partido Integralista do Armênio Veloso, qui foi mais esperto que Tadeu Leite. Se bem qui pulítica é arte do cão. Cê não viu o ajeito que fizeram pra eleger o Capitão Enéas? Seis partidos coligados, a força bruta da puliça e, do outro lado, só o dr. Alfeu Quadros e a buneca de Leonel Beirão de Jesus...

CHICO - Nossa pulítica é de lascar o cano, né cumpadre? Pois não é qui o Coronel João Maia mandou falar ao Presidente qui Montes Claro não tem morféa só pruquê o povo usa urucum na cumida?

MANÉ - Alegria mermo, cumpadre é o cassino. E o povo chupano picolé. E na Rua Quinze as muié... Puxa lá, cumpadre Chico Pitomba!

CHICO (CANTANDO) - "Mas assunta qui inda farta/Mais motivos de alegria,/Pois fuguete na cidade/Se sorta de noite e de dia".

MANÉ (CANTANDO) - "Fora isso, meu cumpadre,/Se sorta sem mais aquela,/Pru quarqué coisinha à-toa:/Quando casa uma donzela,/Quando nasce uma criança/Ou zé Mário vende sela".

CHICO - Tem hora qui dá vontade de chorar também, cumprade. Quando lembro da tragédia das Canoa...

JUCA - Qui mataram o Coroné Marciano, sua muié e a empregada...

CHICO - Quando lembro do assassinato brutal de Fábio Martins e Cláudia Athayde, mortos a tiros e marteladas pela pulícia civil...

MANÉ - Quando recordo das secas de 19, cum o povo passando fome e o boi morreno sem pasto...

CHICO - Quando o cabo Santana morreu na Guerra, defendendo o Brasil contra os nazistas marvados...

MANÉ - Quando lembro dos incêndios de Jabbur e da Casa Luso Brasileira... É, cumpadre, mas os motivo de alegria são maió. Cê lembra da colheita qui a puliça fez no treino do América Futebol Clube?

CHICO - Pois foi, cumpadre! Tomaram 16 revórve e 12 faca dos atreta, qui só jogovam de carça cumprida...

MANÉ - Ou quando o orgulho furmiguense pensa em Monzeca, Newton Prates e Robson Costa, penas de ouro do jornalismo; de Aderbal Sena, campeão mineiro de natação; de Ciro dos Anjos, nosso escritor maior; ou do Geraldo Freire, sem falá nos antigório, do tempo qui vovó tomava banho no cuité...

CHICO - Vão pará puraí, cumpadre, qui isso aqui tá parecendo crônica sociá do Lazim Pimenta...

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FIGUEIRA (CHEGANDO AO GRUPO QUE OUVO O PROGRAMA) - Qui disgraça é essa?

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CHICO - Pois aqui vamos pondo um ponto finá, esperando vortá amanhã, se Teixeira Bastos assim o permitir e João Dutra deixá...

MANÉ - Aqui se dispede...

CHICO - Chico Pitomba...

MANÉ - ... e Mané Juca. Rê, rê, cumpadre!

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FIGUEIRA (PEGANDO O RÁDIO) - Parem com essa capetaria, qui isso é coisa de macumba, coisa de Chico Preto.

JACINTO FAGUNDES - Seu moço, isso aqui é a maior invenção do século, antes do fax. É o rádio receptor, que chega nas ondas "artesianas", conduzindo o progresso.

FIGUEIRA (MAIS CALMO) - E quem é qui tá dentro dele? (RISOS).

JACINTO - Tem ninguém não, seu moço. Olha, não dá pra explicar direito não, mas é só rodar esse botão e sai um tanto de voz. Quer ver. (RODA O DIAL, SURGINDO A VOZ DE LUIZ TADEU LEITE).

TADEU (GRAVAÇÃO) "Nós aqui, do Boca no Trombone, falamos, falamos, mas não tem jeito não. Tá uma confusão dos capeta. Antes, era só uma formiga que queria ser cidade. Pois dona Formiga deixou de ser povoado, virou vila, virou cidade, virou princesa, e tá essa desgraça aí. Os problemas se multiplicam, o prefeito não resolve nada, o povo fica neurótico, os doidos tomam conta das ruas junto com os camelôs, as favelas crescem em rítmo acelerado, o trânsito está caótico... Será que Figueira queria isso, minha gente?"

(FIGUEIRA JOGA O RÁDIO PARA CIMA E SAI DE CENA).

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DÉCIMO QUARTO QUADRO

(TODOS EM CENA PARA VEREM O CASAMENTO)

PADRE - Princesa Formiga Metrópole dos Claros Montes, é de livre e espontânea pressão que recebes em matrimônio Mr. Brown Montini Pierre de Bidon?

PRINCESA - Sim, sim!

PADRE - Mr. Brown Montini Pierre de Bidon, é de livre e espontânea vontade que recebes Princesa Formiga Metrópole dos Claros Montes como sua legítima esposa?

BIDON - Yes... oui... yá... oh, si, si.

PADRE - Que o homem não separe o que Deus uniu, a não ser em caso de divórcio. (ABENÇOANDO) - Eu vos abençôo em nome do...

FIGUEIRA (APARECENDO SUBITAMENTE) - Padre Ivan, padre Ivan o sr. não pode celebrar este casamento, não! É uma traição, padre! Ela me traiu... ele também. Até hoje, nem o supermercado vendido por esse tal de Bidon foi iniciado...

TODOS - Viche!

PADRE - Por favor, retirem este moço do templo do Senhor!

FIGUEIRA - Ela é uma interesseira, padre Ivan. Está casando apenas por interesse. Só porque ele é industrial e fala difícil.

BROWN - Who is? Who is? Quem ser esse impostor?

PRINCESA - Não sei, meu anjo. Juro que não sei?

FIGUEIRA - Bruta! Pérfida! Traideira! Ingrata! Marvada! Rapariga do Bonfim!

PADRE - Por favor, levem esse moço daqui.

POLICIAL (CHEGANDO AO LADO DE OUTRO) - O senhor está preso?

FIGUEIRA - Preso, eu? Mas o que que eu fiz?

POLICIAL (AGARRANDO-O PELA CINTURA) - Deixa de conversa senão vou chamar o Bispo procê.

FIGUEIRA - No tempo do Coronel Coelho e do Coronel Georgino não tinha disso não... (É EMPURRADO PELOS POLICIAIS) - Padre Ivan, padre Ivan, eu vou preso sim, mas, antes, eu queria recitar um poema de Augustão Bala Doce.

PADRE - Que seja breve!

FIGUEIRA (DECLAMANDO) - "Montes Claros, meu amor,/Minha vovó centenária,/Não deixem que te transformem/Numa puta mercenária".

TODOS - Ah, ah, ah! (ENQUANTO RIEM, FIGUEIRA É ARRASTADO E LEVADO PRESO)

PADRE - Silêncio! Nós, como fiéis seguidores das leis divinas, como sempre digo na Missa da Cura, devemos fechar os ouvidos às sandices desse mundo perverso. (VOLTANDO À CERIMÔNIA) - Eu vos abençôo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

TODOS - Amém!

(APÓS SER CUMPRIMENTADO PELOS PRESENTES, JUNTAMENTE COM A PRINCESA, COM OS DEMAIS ATORES ABANDONANDO O PALCO) - Agorra, mim querer conhecerr seus intimidades...

PRINCESA - Oh, meu amor, eu tenho tão pouco para lhe dar. Sou tão pobre, tão poeirenta, tão provinciana.

BROWN - Non, non. Mim querer conhecerr suas pontos históricos (APALPANDO PARTES DO CORPO DA PRINCESA CONFORME A FALA), sua Alto dos Morrinhos, sua Morro do Frade, seu Lapa Grande.

PRINCESA - Minha lapa? Oh, meu amor que veio de longe, minha lapa anda tão abandonada... Os Morrinhos agora são depósito de antenas parabólicas... O Morro do Frade foi invadido pelos alemães e virou Vila de São Francisco. Oh, meu bem que veio do paraíso, eu tenho tão pouco para dar e tanto para receber.

BROWN - Enton dá cá minhas dólares.

PRINCESA - Não, meu rei momo dos furúnculos semeados, assim não pode ser. Eu preciso de seus estímulos. Minha vida depende de seus dólares. Eu posso levá-lo ao Xandu, ao Borello's Grill, ao Lago do Sol, Automóvel Clube, Parque da Sapucaia...

BROWN - Ser muita pouco... Mim quererr boates, motéis, muitas motéis.

PRINCESA - Meu Deus, ele é tão exigente! Se ao menos a gente ainda tivesse a boate da Praça de Esportes com suas matinées dominicais... Meu bem-querer, vamos ao Casebre 13, ao Arrastão, ao Zepelão, ao Forró das Velhas...

BROWN - Non, mim quererr sempre mais e mais. Mim insaciável.

PRINCESA - Então vamos andar de elevador na Ciosa...

BROWN - Oh, oh, oh, isto ser muito engarçada, mas mim quererr asfalto tombém, non?

PRINCESA - Eu dou!

BROWN - Mim quererr Universidade e cento e vinte colégios particulares...

PRINCESA - Eu dou!

BROWN - Mim quererr Conversatório de Música...

PRINCESA - Eu dou!

BROWN - Mim quererr cuba-libre, frente única, canga, mini-saia, um fota na vitrine do Café Galo...

PRINCESA - Dou, dou e dou!

BROWN - Mim quererr isenção fiscal, desconto na IPTU, 16 mansões na Ibituruna e... pê-qui!

PRINCESA - Minha Nossa Senhora do Pé Gelado, logo agora que acabou a Festa do Pequi...

GARÇOM (TRANZENDO UMA BANDEJA COM DUAS TAÇAS) - Aceitam um licorzinho de pequi?

PRINCESA - Pequi? Verdade? Oh, sim, claro, claro. Meu bem, experimente! É uma delícia! Você nunca vai esquecê-lo.

BROWN (SATISFEITO) - Que dilícia! Que saborr! Agorra sim, mim não mais sair de Monte Carlo (BEIJANDO O GARÇOM) - Tu ser um amorr. Querr emprego na fábrica de Corby?

GARÇOM - Emprego, verdade? Pra fazer o quê?

BROWN - Mim dar você misson estratégica: tu vais transformarr transítores, algodão, enzimas, macarron, porrcas e calcário em licorr de pêqui.

GARÇOM - Mas isso é impossível, doutor!

PRINCESA (PUXANDO O GARÇOM DE LADO) - Deixa de ser tolo, Belém! Você não queria fazer o seu pé-de-meia e sair do Mangueirinha? Pois diga que é possível, homem!

GARÇOM (FALANDO A Mr. BROWN) - Claro, claro, é possível, doutor... Eu sei fazer licor até com lentes e miscrocópios. Sou capaz de elaborar a mais fina bebida com bucho de boi e, ainda por cima, fazer tira-gosto de aro de bicicleta...

BROWN - Okapa, macanudo, okapa! Setorr de mão-de-obra aqui serr muita desenvolvido, non?

PRINCESA - E baratíssimo, tudo na base do meio salário.

BRWON - Ter mais pêqui?

GARÇOM - Vamos direto à fonte. Acompanhem-me até a casa de dr. Maurício. (SAEM)

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DÉCIMO QUINTO QUADRO

PACA (TRAZENDO FIGUEIRA) - Quem matou Deli e queimou seu corpo com cartazes da Souza Cruz?

FIGUEIRA (BALBUCIANDO) - Juro que não sei, juro que não sei. Já disse que não sei.

PACA - Quer apanhar mais?

FIGUEIRA - Não, seu delegado. Não! Eu não agüento mais...

PACA - Então, confessa!

FIGUEIRA - Eu não sei. São os mistérios de Montes Claros.

PACA (AGARRANDO-O PELO PESCOÇO) - Quem mandou matar Olímpio Campos, hein? Quem foi?

FIGUEIRA - São os mistérios, seu delegado.

PACA - Mentiroso! Quem foi que mandou matar Izael e Ana Maria?

FIGUEIRA - Foi... foi... foi o veado.

PACA - O veado???

FIGUEIRA - Pois os bicheiros não estavam atrás? Então foi o veado que mandou...

PACA - Quem mandou matar Cláudia Ataíde e Fábio Martins?

FIGUEIRA - Aí, não, seu Paca. Em briga de família eu não entro...

PACA - Quer voltar pra lá?

FIGUEIRA - Não, pelo amor de Deus, não! Pau-de-arara não...

PACA - Então diga onde está Zinho...

FIGUEIRA - Eu não sei, seu Paca. Pela alma de minha mãe, eu não sei. Deve estar enfiando bufa no cordão...

PACA - Ou você põe tudo em pratos limpos ou vai levar mais bolacha na cara!

FIGUEIRA - São os mistérios, seu delegado. São os mistérios de Montes Claros...

PACA - Deixa de conversa fiada, seu imbecil! Quem foi que mandou matar Teninha?

FIGUEIRA - Ninguém mandou não, seu Paca. Ele morreu afogado.

PACA - Morreu o quê?

FIGUEIRA - Bem, bem, são os mistérios do São Francisco...

PACA - Quer levar uma...

FIGUEIRA - Não, não, ponta de cigarro não. Eu confesso.

PACA - Então faça o favor de abrir o bico. Quem matou Teninha?

FIGUEIRA (CANTANDO) - "Quem matou Papai Vovôô?/Quem matou Papai Vovôô?/Foi um grande matadô,/Foi um grande matadô... (É LEVADO PARA OS BASTIDORES, CANTANDO).

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DÉCIMO SEXTO QUADRO

MOACIR (ENTRANDO COM TADEU E PEDRÃO) - E agora, Tadeu? E agora, Pedrão?

TADEU - O progresso é irreversível, Moacir. Com o casamento de Mr. Brown com a Princesa, Montes Claros vai ser elevada à posição que realmente merece no cenário nacional.

PEDRÃO - Certo, Tadeu, mas devemos cuidar para que esse progresso não represente a falência do meu povo.

MOACIR - Deixa de ser demagogo, Pedrão. Povo sem progresso é povo subdesenvolvido. E se a Sudene veio, nós temos que ampará-la.

TADEU - Eu concordo com Moacir. E se o Distrito Industrial virar um cemitério de indústrias? Os empresários vêm de fora, pegam o dinheiro, somem no mundo e deixam as empresas fechadas. Aí, sim, é que o povo vai passar fome mesmo. Fora os flagelados que virão de fora engrossar o bolsão de pobreza.

PEDRÃO - Se já temos Universidade com mais de dois mil alunos, o museu folclórico de Zezé Colares e até o Centro Cultural de Ildeu Braúna, devemos lutar para que nossos filhos tenham um futuro tranqüilo. E só conseguiremos isto se disciplinarmos o crescimento da cidade.

MOACIR - Então vamos ter que asfaltar todas as ruas, acabando de vez com a poeira e os buracos.

TADEU - Eu acho melhor usarmos umas pedrinhas, pois isso dará mais emprego para os pobres e reduzirá as altas temperaturas provocadas pelo asfalto. Depois a gente passa uma borra de asfalto por cima.

PEDRÃO - Isso mesmo, Tadeu. Asfalto só serve pra incentivar os ricos a correr mais e matar os pedestres que atravessarem a pista.

TADEU - Outra grande obra será a "cirurgia plástica" recomendada por Simeão Ribeiro. Vamos contratar dr. Carlos Muniz e mandar que ele tire todas as rugas dessa velha assanhada. Afinal, dizem as projeções do DataFolha que teremos 500 mil habitantes no ano 2.000.

MOACIR - Você me decepciona com suas utopias, Tadeu. Daqui até o ano 2.000 vai rolar muita água debaixo da ponte. Está muito longe pra gente pensar nisso agora. Como diz Carlos Versiani, nós não podemos usar subterfúgios. Nós temos que atacar o problema de frente.

BROWN (CHEGANDO TODO PROSA) - Posso saberr o que discutem?

MOACIR - Estamos tentando dar ao senhor uma metrópole que possa comportar todas as suas fábricas...

TADEU - E os pepinos também...

BROWN - Isto serrr muito boa, mas mim não sentirr providências para trazerr televisão.

PEDRÃO - Já está quase resolvido; o Ubaldino Assis, o Waldemar Haiden e o Antônio Ramos captaram a imagem e o som da TV Itacolomi lá no alto do Pentáurea. Agora só faltam a Globo e a Vila Rica.

BROWN (ARROTANDO) - É a revolta do pêqui, acho que é o pêqui...

MOACIR (TAPANDO O NARIZ) - Já mandamos fazer, especialmente para o senhor, um motel nos mais modernos padrões.

BROWN? - Só uma...

PEDRÃO - É... é... bem... se o senhor quiser, a gente manda fazer mais uns trinta.

BROWN - E os muchachas?

TADEU - Esta parte está resolvida também: Ainda hoje o Magnus Medeiros vai fazer uma festa apenas com uns brotinhos daqui, ó.

BROWN - Não serr bem isso a que mim referirr.

MOACIR (RINDO) - Já sei, já sei, Mr. Broa. Mas nós temos a Roxa, Anália, Edna, Leobina, fora o João Pega Mal, a Zinha e a Valmira.

PEDRÃO - O trotoar na Praça Dr. Carlos, como o Míster exigiu, também já é uma realidade.

BROWN (EXULTANTE) - Realmente, acho que fiz um ótima opção ao escolherr Monte Carlo (COCHICHANDO) - Seria demais fazer uma campo de aviacion lá naquela alto do Ibituruna, perrta de meus mansões?

MOACIR - Não, isso não. Nós já mudamos a pista do antigo aeroporto, onde desciam aviões da Panair. O Nathércio França sabe como era difícil descer na pista antiga. Hoje temos pista internacional e até táxi aéreo. Só faltam os aviões da Varig. Não fica bem fazer aeroportos doméstticos.

TADEU - Se a gente atender sua reivindicação, o Waldir Sena mete o pau no Jornal de Montes Claros.

PEDRÃO - Se bem que Jorge Silveira defende no "Diário", mas temos que preservar a moralidade administrativa.

BROWN (LEVANDO A MÃO À CABEÇA) - Meu cabeça estarr doente. Acho que foi a cheiro do pêqui. Aqui non ter cantadores non?

MOACIR - Viche! Temos o Beto Guedes, Aline Mendonça, Djalma Lúcio, Jorge Santos, os irmãos Elthomar e Smoro da Ponte...

TADEU - O Grupo Raízes, a seresta de Hermes, Alencar Carneiro, Maurício e Luís de Paula, além de Tino Gomes, Dandão Neto e Teo Azevedo.

PEDRÃO - Tá bom ou quer mais? Se bem que a maioria foi baixar em outros centros e os demais estão em recesso. O único que dança e canta de vez em quando é o Grupo Banzé. O Míster já conhece o Banzé?

BROWN - Oh, si, claro... Banzé serr marravilhóso, sensacional, wonderful! Mim já vê-lo em todas os países. Mim gostarr muito duns versinhos.

MOACIR - A turma aqui passa o dia todo fazendo versos. É só achar uma caninha no caminho. Se facilitar, até Mário Ribeiro faz rima com Telé e entra na roda com Zé Amorim.

BROWN - Mário serr irmão do Darcy?

PEDRÃO - É esse mesmo. Darcy, irmão do Mário, filho de Mestra Fininha, é nossa maior intelectualidade, o filho ilustre que se imortalizou na Academia Brasileira de Letras.

BROWN (ENFASTIADO) - Conversa estarr muito bom, mas mim ter que partirr (SAINDO APERTANDO A BARRIGA) - É a cheiro do pêqui, é a gosto do pêqui. (É ACOMPANHADO PELOS TRÊS ATORES).

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DÉCIMO SÉTIMO QUADRO

CRONISTA (ABORDANDO FIGUEIRA, QUE ESTÁ ASSENTADO NUM CANTO DO PALCO, CHORANDO BAIXINHO) - Por que choras, meu amor?

FIGUEIRA - São os mistérios de Montes Claros. (SOLUÇANDO) - São os mistérios de Montes Claros...

CRONISTA - Chora não, meu amor!

FIGUEIRA - Peraí, mas que história é essa? Por acaso o distinto está me achando com cara de safado?

CRONISTA - Oh, minha flor, como ele é machão!

FIGUEIRA - Você, por acaso, é o Olguinha?

CRONISTA - Oh, que ofensa! Me comparar logo com aquele lixo...

FIGUEIRA - Então é o Nilsinho, o Jasmim, o ...

CRONISTA - Não, não e não! Detesto essa plebe!

FIGUEIRA - Então é o cronista Riquinho Júnior...

CRONISTA - Previsava falar tão alto assim, precisava? Eu só quero ajudá-lo...

FIGUEIRA - Eu não suporto mais! Esta cidade me mata de desgosto. Aonde é que eu ia imaginar uma coisa dessas? Atenção, senhores mesários do bingo do São Pedro: aonde?

CRONISTA - Não se irrite, meu bem. O tempo dos Brucutus, do Le Cheris, do Zé Coco e do Juventude em Brasa já passou.

FIGUEIRA - Estou ficando maluco. Não, não pode ser: muriçoca, assalto, Márcia Sá, jogo da bicha...

BICHEIRO (GRITANDO) - Olha o Priquitim, olha o Priquitim! Olha o Mosquito, olha o Mosquito! Quem não arrisca não petisca. Vamos marcar galo na cabeça. Só dá galo! (DIRIGINDO-SE AOS DOIS) - Vai um passe aí?

CRONISTA - O que é isso, Igor?

FIGUEIRA - É um absurdo! Um abuso!

(CATOPÊ ENTRA ASSIM QUE O BICHEIRO SAI. VEM PULANDO E SAMBANDO)

FIGUEIRA - Quem é ele?

CRONISTA - É o Pindoba. Parece que ele ressuscitou só para comemorar a morte das Festas de Agosto...

CRONISTA (DIRIGINDO-SE A UMA LOUCA QUE VAI PASSANDO) - Quantas horas, Emília?

EMÍLIA - Rá, rá, rá! (DÁ UMA GARGALHADA E LEVANTA A SAIA)

TUIA (VEM ATRÁS DE EMÍLIA, COM UM BICO NA BOCA E UM CANECO DE CACHAÇA NA MÃO, BALBUCIANDO E GESTICULANDO).

FIGUEIRA - É o Benedito?

CRONISTA - Não, seu boiola. Esse aí é o Tuia.

FIGUEIRA - E aquele lá?

JOÃO DOIDO (REPETITIVO) - Eu sou João, eu sou João. Teresinha é minha, Teresinha é minha...

FIGUEIRA - C'os diabos! Assim também já é demais!

MENOR ABANDONADO (PASSA UM PANO NO SAPATO DE FIGUEIRA, DEPOIS NO DO CRONISTA, ESTENDE A MÃO E RECEBE UM TROCADO).

NEN CABRINHA (ACOMPANHADO DE DUAS LOUCAS) - Cadê o ladrão, cadê o ladrão?

CRONISTA - Olá, olá, Helena e Patrícia estão namorando o Nen Cabrinha.

NEN - Cabrinha é a mãe! (AMEAÇA JOGAR UMA PEDRA, ASSUSTANDO FIGUEIRA E O CRONISTA) - Povo besta, não pode ver um Galinheiro fica lelé da cuca. Eu mato um a um... (CANTANDO) - "Eu mato, eu mato/Quem roubou minha cueca/Pra fazer pano de prato..."

FIGUEIRA - Minha cabeça dói. Meu corpo está dormente. Minhas idéias estão embaralhadas. Acho que estou ficando maluco.

CRONISTA - É coisa feita, minha flor. Vamos lá no Zé Fernandes, no Adeone, no Castelo. Vamos lá que eles dão um descarrego em você.

FIGUEIRA - Não, macumba não!

CRONISTA - Que homem chato! Quer que eu chame o Oriete Bey, quer?

FIGUEIRA - Não, pilantra não!

CRONISTA - Hum, que metidez! Você não passa de um pé-repado, sabia? Se fosse ao menos colunável... Quer que eu te leve ao psicólogo, quer? Barros Lima mora logo ali...

FIGUEIRA - E tem isso aqui?

CRONISTA - Meu amor, aqui tem até Discagem Direta Internacional... Já tem Centro de Computação Eletrônica, quanto mais psicólogo.

FIGUEIRA - Mas ele resolve?

CRONISTA - Olha, não adianta ficar aqui conversando. Vamos lá que você vai ver. (SAI, LEVANDO FIGUEIRA).

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DÉCIMO OITAVO QUADRO

PEDRÃO (RETORNANDO À CENA, COM MOACIR E TADEU) - Esse tal de Míster Broa está querendo demais.

MOACIR - É, daqui a pouco acaba o dinheiro e nós vamos ter que nos sujeitar aos juros altos do Tião Medonho...

TADEU - Não adianta querer dar infra-estrutura de urgência a uma cidade que não estava preparada para receber a industrialização.

PEDRÃO - Eu tenho uma idéia: vamos aumentar nossa representação na Assembléia e na Câmara dos Deputados...

TADEU - É melhor aumentar o IPTU.

MOACIR - Boa idéia. Como diria Mr. Brown: "It's a good idea". Se precisar, podem contar comigo para o aumento dos cálculos das planilhas.

TADEU - Não sei se esta seria a solução. Deputado hoje manda tão pouco... E, depois, o Geraldo Athayde foi prefeito sem essa coisada toda e conseguiu colocar Montes Claros entre os maiores municípios do país.

PEDRÃO - É, mas naquele tempo não havia os Brown, os Montini, os Pierre e os Bidon pra ficar atrás dele pedindo desenvolvimento...

TADEU - Se o Edgar Pereira fosse vivo, tenho certeza de que seria nosso aliado. Ah, quem sabe se Teófilo Pires ajuda a gente...

PEDRÃO - É pouco. Nós precisamos de mais deputados. Aqui já está resolvido. Basta contar com o apoio de Neco Santamaria, do Dácio Cabeludo, Cláudio Pereira, Benedito Said... O importante é que tenhamos uma boa representação na Câmara federal e na Assembléia Legislativa.

MOACIR - Exatamente! Vamos colocar o Dias, Humberto Souto, Pedro Narciso, Genival Tourinho, Artur Fagundes, a Elbe Brandão pra reivindicar a nível de governo.

PEDRÃO - Eu e o Moacir podemos nos candidatar também, nem que seja pelo Estado de Tocantins, né Moa?

MOACIR - Se é para o bem da nação...

TADEU - Se precisar, a gente manda buscar o Cleuber em Januária, o Geraldo Santana em Salinas e o Armando Costa em Pirapora. É isto: afinal, nós temos a maior bancada de todos os tempos. São dez deputados na Assembléia, fora os da Câmara federal. Mas onde é que vamos lançar esse plano?

PEDRÃO - Que tal no Zim Bolão?

MOACIR - Pode ser lá, na casa de Athos Braga ou no escritório público da Praça Dr. Carlos, ali no Denner do Caldo de Cana. O importante é que, a partir de agora, esse tal de Mr. Brown tenha tudo de que precisa.

TADEU - Por enquanto, o problema está resolvido, mas tudo não passa de uma solução paliativa. A solução definitiva só virá com a construção de um hospital de burros na cidade.

PEDRÃO - O homem não desiste mesmo... (SAEM DE CENA)

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DÉCIMO NONO QUADRO

PSICÓLOGO (RECEBENDO FIGUEIRA E O CRONISTA) - Mas que prazer em receber o mais badalado cronista de nossa querida Montes Claros! Cumé qui vai o boteco?

CRONISTA - Um desbum. Botei aquela figura na geladeira e as coisas melhoraram demais.

PSICÓLOGO - Que figura? O peixe?

CRONISTA - Não, aquela loura deslumbrada que não saí do pé dos meus bofes. De leve.

PSICÓLOGO - Você viu o que fizeram com o Tigrão? Morto covardemente numa rua do centro da cidade.

CRONISTA - É, que horror, né doutor? Vim aqui trazer esse pobre coitado que também encontrei na rua.

PSICÓLOGO - Mais uma vítima do caos urbano...

CRONISTA - Ele diz que inventou a cidade. É a neurose, doutor, é o progresso.

PSICÓLOGO - Assentem-se, por favor. (CONSULTANDO FIGUEIRA) - Comececemos pelo princípio.

FIGUEIRA - No princípio, eu criei o céu e a terra. Depois, criei uma formiga e, por fim, essa bosta que está aí.

PSICÓLOGO (RINDO) - Está bem, meu filho. Já diagnostiquei o seu mal: é a síndrome da megalomania. Antigamente, os padres de batina branca é que aliviavam essas tensões.

FIGUEIRA - Mas é verdade, doutor! Eu previ uma coisa e deu nisso aí. Está certo que Montes Claros tenha suas modernidades, que seja bonita e gostosa, que seja a cidade da arte e da cultura, que tenha suas paredes de enchimento substituídas por vigas de concreto, como diz Geraldo Prates, mas eu não admito que a doce formiga que eu gerei seja transformada numa princesa sem escrúpulos.

CRONISTA - Deixa o doutor falar, querido!

PSICÓLOGO - Já sei, já sei, eu entendo. Então, vamos ser objetivos: o senhor prefere ficar louco, cego ou transviado?

FIGUEIRA: - Louco? Cego? Transviado?

PSICÓLOGO - É, pra enfrentar esse progresso desvairado, não há outro remédio.

FIGUEIRA (LEVANTANDO-SE) - Um momentinho, doutor. Um momentinho... (VAI ATÉ A BOCA DE CENA, VASCULHA A PLATÉIA COM OS OLHOS E VOLTA) - Doutor, que seja mantida a decisão da maioria aqui presente: eu quero ficar cego!

PSICÓLOGO (APÓS ENTREGAR-LHE UM PAR DE ÓCULOS ESCUROS, UMA LATINHA E UMA BENGALA) - Siga em paz, meu filho. Com esses óculos, tudo lhe parecerá belo e maravilhoso. Siga em paz.

FIGUEIRA (CAMINHA AMPARADO PELA BENGALA E O CRONISTA QUE, A EXEMPLO DO PSICÓLOGO, ESCORREGA PARA OS BASTIDORES. ASSENTA-SE NO CHÃO) (CANTANDO) - "Ó irmão que vai passando,/Tenha dó, dá seu vintém,/Quando Deus pidiu ismola,/Foi pra nóis pidir também..."

BROWN (ATRAVESSA O PALCO, JOGA UMA MOEDINHA NA LATINHA DE FIGUEIRA E SAI).

FIGUEIRA (AGRADECENDO, CANTANDO): "Agardeço a sua ismola/Ao ceguinho de nascência,/E que Deus o tenha em breve/Na sua ogusta presência..."

JUVENTINA (PASSA AO LARGO, CANTANDO): "Zé de Brito, Zé de Brito,/Zé de Brito, óia nóis aqui./Os botões da blusa/Que você usava/Já dizia tudo/Não dizia nada./Quero que você me aqueça neste inferno/E que tudo mais vá pro inverno/Ô, ô.../Brasil, mostra a tua cara/Quero ver quem caga/Pra gente feder assim"

HIPPY (OUTRA MARCA DO "PROGRESSO" QUE SE APROXIMA DE FIGUEIRA) - Qualé, chegado, tá injetando uma Aids na cabeça ou tá na base do pico dos anos 60? Ih, ih, tá com cara de Marta Suplicy...

FIGUEIRA - Pára, pára, pára com isso!

HIPPY - Sai dessa, meu! Vai um crack aí?

FIGUEIRA - Some daqui moleque sem-vergonha!

HIPPY (SAINDO) - Bundão, careta, xarope, naftalina.

BETÃO (ENTRA EMPURRANDO UM CARRINHO, MALTRAPILHO E DE ÓCULOS ESCUROS, TODO DESENGONÇADO, E SE DIRIGE A FIGUEIRA) - Ó os zói dessa bobagem...

FIGUEIRA (TATEANDO EM BUSCA DA BENGALA) - Mas que loucura, gente! O homem tirou minha visão mas se esqueceu de tapar meus ouvidos... (LEVANTA-SE E SAI CAMBALEANDO, ENQUANTO VOLTAM OS LOUCOS, RAPARIGAS E SIMILARES, REPETINDO TUDO QUE DISSERAM OU CANTARAM ANTES, TODOS AO MESMO TEMPO. FIGUEIRA RODOPIA NO PALCO, TAPA OS OUVIDOS, DEIXANDO A BENGALA CAIR, E CAMBALEIA PARA UM LADO E OUTRO) (DIRIGINDO-SE A UM DOS COMPONENTES DA FILA FORMADA PELOS ATORES APÓS A CONFUSÃO INICIAL) - Essa fila é do pagamento do Estado, do INPS ou do SUDS?

BICHEIRO - Não, esta aqui é a fila do lotação.

(FIGUEIRA SAI AINDA CAMBALEANDO, ÀS APALPADELAS. OUVE-SE BARULHO DE AUTOMÓVEIS)

JUVENTINA (FAZENDO CORO COM OS DEMAIS ATORES) - Cuidado, cuidado, ó o carro!

(É TARDE. UM IMAGINÁRIO AUTOMÓVEL DÁ UMA BUZINADA ESTRIDENTE, FREIA BRUSCAMENTE E ATROPELA FIGUEIRA, QUE DANÇA NO AR, BALANÇA O CORPO, DÁ UM GRITO SELVAGEM E CAI MORTO).

(ENTRA, AO FUNDO, A MÚSICA "MINHA COMADRE, SEU MARIDO MORREU/ANCÊ VAI FICAR SOZINHA,/MAS SE ANCÊ ARRESORVER CASAR, MINHA COMADRE,/NÃO SE ESQUEÇA, A PREFERÊNCIA É MINHA").

TODOS (AO SOM DE UMA MÚSICA DE DISCOTECA, COMEÇAM A DANÇAR FRENETICAMENTE AO REDOR DO DEFUNTO).

BROWN (ENTRANDO QUANDO A MÚSICA ESTÁ QUASE NO FIM. VEM FUMANDO UM CHARUTO E ARRASTANDO A PRINCESA, QUE TEM NO ROSTO UMA MÁSCARA ANTIPOLUIÇÃO. Mr. BROWN VAI SOPRANDO FUMAÇA NO PESSOAL).

TODOS (CORRENDO DESESPERADOS, GRITANDO ATERRORIZADOS E DEIXANDO APENAS N CADÁVER NO PALCO) - É a poluição! É a poluição!

BROWN - I'm sorry, I'm sorry (VIRANDO-SE PARA A PRINCESA) - Vamos, meu amor, que é chegada a hora. O futuro nos espera.

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(ACENDEM-SE AS LUZES. É O FIM)

OBS: QUALQUER COINCIDÊNCIA COM PESSOAS VIVAS OU MORTAS É MERA SEMELHANÇA...



SEU MARIDO SABE QUE VOCÊ TEM OUTRO HOMEM?

(Uma peça com 13 personagens e um ator)

Autor: Reginauro Silva

1º QUADRO
(CRISTIANO ENTRA EM CENA CAMBALEANDO, COMO SE ESTIVESSE SENDO CONDUZIDO POR UMA DUPLA DE POLICIAIS. LEVA UM EMPURRÃO. FAZ QUE CAI, RETOMA A POSIÇÃO. PÁRA EM FRENTE A UMA MESA COM MÁQUINA DE DATILOGRAFIA E UMA FOLHA DE PAPEL JÁ NO PONTO. AO LADO, OUTRA MESA, A DO DELEGADO. CRISTIANO VAI RESPONDER A UM INTERROGATÓRIO).
(FALANDO) - Cristiano. Alberto Cristiano de Souza (PAUSA) - 28 anos. (PAUSA) - Corretor de imóveis. (PAUSA) - Rua Joaquim Flores, 615, Barra. (PAUSA) - Solteiro. (PAUSA) - João Epaminondas de Souza e Maria Adelaide de Souza. (PAUSA) - Não, nenhum. Quer dizer, de vez em quando tomo umas cervejinhas. (PAUSA) - Tenho, sim senhor! (COMEÇA A ABRIR A BRAGUILHA, ASSUSTA-SE, VOLTA A FECHÁ-LA) - Mas eu só ia mostrar pro senhor! É uma cicatriz pequena, a única marca que tenho no corpo... (PAUSA) - Não, é a primeira vez. Aliás, eu vim, há muitos anos, tirar um atestado de bons antecedentes. Mas isso não conta, né? (PAUSA) - Não !!! (PAUSA LONGA. CRISTIANO VIRA-SE PARA A MESA DO DELEGADO, LARGANDO A POSIÇÃO DE QUEM RESPONDIA AO ESCRIVÃO) - Eu posso explicar, seu delegado? (PAUSA) - Mas o senhor só sabe da maneira que eles contaram. Eu tenho a minha versão! (PAUSA) - Prometo que não vou me alongar... (PAUSA) - Mentira, seu delegado. Mentira! Tudo mentira. Foi assim, ó... (PAUSA) - Mas isto não é um interrogatório policial? (PAUSA) - Então, o réu tem o direito de falar também. Onde é que está a Justiça? O senhor acha que é certo um cidadão ser acusado e não poder se defender? (PAUSA) - Desacato coisa nenhuma, eu só estou pedindo pra contar do jeito que aconteceu. Porque, até agora, o senhor só disse mentiras... ("LEVA" UM TAPA E CAI) - Ai! Mentira deslavada. Não sei se foi o senhor que inventou, não, mas eu nunca vi essa mulher. (LEVANTANDO-SE) - Quem, eu? Por Virgem Maria Santíssima, seu delegado, eu não sei nem a cor dos olhos dela. Já tive vários casos, já beijei muitas mulheres na boca, algumas casadas, é verdade, mas essa não. Estão me acusando de uma coisa que eu não fiz. (PAUSA) - Claro, todo homem faz, é regra da sociedade, mas juro que nunca comi aquela mulher. Aliás, a última vez que eu... (INTERROMPIDO) (AO ESCRIVÃO) - Eu não disse que inventaram tudo? Pelo que sei, essa mulher não é nenhuma santa (PAUSA) - Conversa de botequim, seu delegado... O senhor sabe, o pessoal não tem nada pra falar, então, começa a fofocar a vida dos outros. Foi assim que fiquei sabendo. Não sei se é verdade, não, mas a turma do Samburá chama ela até de rapariga! (PAUSA) - Marido??? E ela é casada? (PAUSA) - Cinco filhos? Pois o que eu sei é bem diferente. Dizem que tem esse tanto de filhos, sim, mas que são de vários homens... (PAUSA) (ENTRA "UM HOMEM". CRISTIANO SE LEVANTA E "O ACOMPANHA" COM OS OLHOS) - Este é que é o marido? (PAUSA) (AO "HOMEM") - O senhor por acaso me conhece? (PAUSA) - Então, como é que anda me acusando de estar operando sua mulher? (PAUSA) - Pois mate, se quiser, mas mate sabendo que estará matando um inocente. (PAUSA MAIOR) - O senhor tem a carta aí? ("PEGANDO" UMA CARTA INVISÍVEL) - Mas que coisa incrível! Claro que a letra é minha... Mas alguém pode ter falsificado. (PAUSA) - É, de fato a assinatura é idêntica à minha. Mas eu não escrevi isso não, moço! (DEVOLVENDO A "CARTA") - O senhor acha que eu sou bobo de andar escrevendo cartas para mulheres casadas? Ainda mais uma dama tão respeitável como a senhora sua esposa... (OLHANDO IRONICAMENTE PARA O "DELEGADO") ... elogiada em todas as rodas do soçaite. E apenas para me comprometer? Eu posso ser bobo, mas louco eu não sou não. (PAUSA) (PEGANDO UM "CHAVEIRO") - É, é meu sim, acho que perdi na semana passada. Alguém deve ter achado e colocado na casa do senhor, não é seu delegado? (PAUSA) - Juro que é verdade! Nunca fui tão sincero na minha vida. Pela alma da minha finada mãe, eu nunca vi este senhor, não conheço a mulher dele... Acho que tudo isso é intriga do pessoal da imobiliária, alguém que está querendo tomar o meu lugar. (PAUSA) - Preso, eu? Peraí, eu tenho ou não tenho o direito de defesa? Moço, pelo amor de Deus, não deixa eu ser preso não! Moço, pelo bem que o senhor tem a seus filhos... (INTERROMPIDO) - Mas que adultério, seu delegado? Eu estava apenas passando na porta, nem sabia que esse cidadão morava lá. (PAUSA MAIOR. O DELEGADO "MANDA" DOIS POLICIAIS LEVAREM CRISTIANO, QUE FAZ MÍMICA, COMO SE ESTIVESSE SENDO ALGEMADO) (SENDO "CARREGADO") - Mentira, seu delegado, mentira! Ele está falando assim é pra arranjar um jeito de largar a mulher.
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2º QUADRO
(CRISTIANO CONVERSA COM O "COMPANHEIRO" DA CELA VIZINHA, UM "PÁSSARO" ENGAIOLADO QUE, PARA ELE, É UMA MULHER. NA REALIDADE, SÓ EXISTE A GAIOLA VAZIA) - Qual é o seu caso? (PAUSA) - Ah, é o 233. O meu é o 240. Mas que cidade esquisita! Desde quando constitui ato obsceno o fato de uma mulher linda como você tirar a calça e urinar na rua? (PAUSA) - Ah, ah, ah... Pois o meu caso foi diferente: eu estava passando tranqüilamente em frente a uma casa, ia fechar um contrato... (PAUSA) - De compra e venda, sou corretor de imóveis. De repente, apareceram três PMs, me agarraram por trás e me fizeram preso, dizendo que eu estava trepando com a dona da mansão. (PAUSA) - E você acha que adiantou? Falei tudo, tentei contar a verdade, mas você... Como é mesmo o seu nome? (PAUSA) - Muito prazer. O meu é Cristiano. Alberto Cristiano de Souza. Como ia dizendo, suei pra convencer o delegado de que era inocente, mas você sabe muito bem que polícia não acredita em civil. Basta entrar aqui e eles já vêem a gente como culpado, réu sem defesa. Até prova em contrário... Depois, chegou o fiadaputa do marido e foi logo dizendo que era eu sim, que ele viu - imagine, acharam até uma carta com minha letra, minha assinatura, tudo. (PAUSA) - Sei lá, alguém deve ter falsificado, eu disse pra eles. Mas tinha um chaveiro também, com as mesmas chaves que eu uso. (PAUSA) - Você também não acha estranho? É muita coincidência! O mesmo chaveiro que perdi na semana passada e o homem lá, balançando ele na minha cara... (PAUSA) - Você também está duvidando, é? (PAUSA) - Mas será que ninguém acredita em mim? Juro que não tenho nada a ver com essa tal de... (TENTANDO LEMBRAR) - Não sei, nem o nome dela eu sei, está vendo? Acredita agora? (PAUSA) - Por que eu tinha precisão de te enganar? Ora essa! (PAUSA) (RINDO) - Casada, solteira, viúva ou está disputando palitinhos? (PAUSA) - Hum, entendo. Mas isso é muito comum hoje em dia. Olha, eu tive uma amiga, mãe solteira como você, que vivia na maior felicidade. Foi só arranjar uma carinha pra morar com ela e a menina entrou numa de horror. Arranjou uns vícios esquisitos, passou a cheirar além da conta, daí a uns tempos foi presa por tráfico de drogas. (PAUSA) - Ainda bem que você não é chegada nessas coisas, senão... (INTERROMPIDO) - É, não tenho nada com sua vida, não, mas tem coisa melhor pra gente fazer. Sabe que estou sentindo um alívio enorme só em ficar conversando com você? É como se eu nem estivesse preso. (PAUSA) - Ei, ei, onde é que fica o banheiro aqui? (PAUSA) - Não tem? Como é que a gente faz, então? (PAUSA) - Vou demorar a me acostumar com essa porcaria. (PEGA UMA LATA NO CHÃO, VIRA-SE DE COSTAS E COMEÇA A URINAR) - Daqui a pouco vão me processar por violento atentado ao pudor... (PAUSA) - Já tá na hora da bóia? Qual é o cardápio? (PAUSA) - Eco! (PAUSA) - Eco! (PAUSA) - Eco, eco e eco! (PAUSA) - Pára de falar senão vou vomitar antes dessa merda chegar. (PEGANDO UM COBERTOR NO CHÃO) - É com esse molambo que a gente enfrenta o frio? (PAUSA) (AFAGANDO A GAIOLA) - Ainda bem que eu tenho o meu "cobertor de oreia", ah, ah, ah! (AFASTA-SE SÉRIO) - Desculpa, desculpa, é brincadeira. Mas não tem nem um colchãozinho, nem um travesseirinho pra gente esticar o esqueleto em paz? (PAUSA) - Porra, você só deu informações ruins até agora! Desde que entrei aqui você não falou nada que presta. (CONTANDO NOS DEDOS) - Não tem privada; a comida é arroz, feijão e vem com barata; banho só de mês em mês e, assim mesmo, com uma mangueira enfiada na cela; perigo de contaminação de calazar, Aids, sarna e outras pragas; abandono da família; cimento frio pra dormir; grande incidência de pernilongos. Porra, será que não há nada que se aproveite neste caralho? (PAUSA) - Por que é que você está chorando? (AMOROSO) - Oh, meu amorzinho, não fica triste, não. Eu só falei por bem, me desculpe. Juro que não quis te magoar. Eu gosto tanto de você! (PAUSA) (NERVOSO) - Deixa de ser tola, mulher! Chorando feito uma vaca parida só porque eu falei umas verdades! Pois fique sabendo que, para mim, pouco importam essas lágrimas que você está derramando. Não tenho nada a ver com suas frustrações, com suas babaquices. E sabe de mais uma? Vá você e toda essa frescuragem pra puta que pariu! (CHORANDO) - Mas que desgraça! A vida toda lá fora e eu aqui, comendo o pão que o diabo amassou, longe da família, longe dos amigos, ameaçado de perder o emprego... (CHORANDO MAIS ALTO) - Pai, por que me abandonastes? O que que eu fiz pra sofrer tanto? Nunca você me deu uma oportunidade de ser alguém na vida. É só porrada, porrada. Deus, meu Deus, me ajude! Eu preciso tanto de você! (PARA A GAIOLA) - Chora não, meu bem, eu vou te ajudar. (SOLENE) - Eu sou o bálsamo que alivia todas as dores, a paz que acalenta o coração do homem, o sorriso estampado no rosto da criança. Eu sou a luz do mundo! Quem vem a mim, jamais andará sob as trevas. (PARA A PLATÉIA) - "Mas ai de vós, ricos, porque recebestes já a vossa consolação. Ai de vós, que estais fartos agora, porque havereis de ter fome. Ai de vós, que agora rides, porque havereis de gemer e chorar. Ai de vós, quando todos os homens falarem bem de vós, porque deste modo é que procediam os seus pais com os falsos profetas." Lucas, seis, 24-26. (À GAIOLA) - Você acredita em Deus? (PAUSA) - Ave Maria! Nunca fui nem pretendo ir. Eu tenho horror a terreiro. (PAUSA) - Mas essa gente só faz o mal, só pensa na desgraça dos outros. É quebrar a perna de um, mandar outro pro inferno, tomar o marido de uma pobre coitada, oferecer uma criança em holocausto ao Exu da Fogueira... (PAUSA) - Mas, claro, claro, você tem razão. Há muita diferença entre a umbanda, que só pratica o bem; a quimbanda, que só faz o mal; o vodu, cujo chefe supremo é Lúcifer, e por aí afora. (PAUSA) - É, aprendi por mim mesmo. Sou autodidata em transas do sobrenatural. (PAUSA) - Mas o importante é você ter alguma crença, alguma coisa pra se segurar. Maconha, cachaça, haxixe, cigarro, heroína, PC Farias... muitas pessoas se apegam às drogas porque não têm uma fé verdadeira, sabia? E quando o homem sente falta de uma fé, ele se volta para outros ídolos. Se segura no que estiver a sua frente. Pode adorar um cantor tipo Jorge Benjor ou a Daniela Mercury, uma atriz cativante como (ENROLANDO A LÍNGUA) a Patrícia França ou mesmo um general da reserva. Tem gente que, na falta de coisa melhor, se apega a animais, bichinhos de estimação... (DE REPENTE, CRISTIANO ENTRA EM TRANSE. ESTÁ INCORPORANDO O ESPÍRITO DE "BOIADEIRO") - Ei, ei, opa, opa... (ENGROSSA A VOZ) - Ogun Ogun ê! (RITMO DE ATABAQUES AO FUNDO) (CANTA) - "Quem é o cavaleiro/que vem lá de Aruana/É Oxóssi em seu cavalo/Com seu chapéu de banda/Araruana ê/Araruana á" (RERTORCENDO-SE) - Saravá, irmã! Irmãzinha quer a proteção do Boiadeiro? (AFINANDO A VOZ) - Irmãzinha tá presa, né! Irmãzinha tava fazendo xixi na rua. Irmãzinha tava sem calça, ih, ih! Pode deixar que Boiadeiro vai dar um jeito. Irmãzinha tá gostando do meu cavalo? Irmãzinha tá apaixonada? Fala, irmã! (ENGROSSANDO A VOZ) - Fala, desgraçada! Solta as pragas que estão escondidas nesse corpo imundo! Fala, miserável! Boiadeiro quer ouvir tudo. (DANÇANDO E CANTANDO) - Boiadeiro vai mamar! (VOLTANDO A FALAR) - Irmãzinha tá com medo, tá? Irmãzinha tá tremendo... Por que treme, irmãzinha? Boiadeiro não machuca. O cavalo também quer? (PAUSA) (BRAVO) - Malditas sejam todas as mulheres que sacrificam o próprio corpo em nome do sexo! Lancem-se ao fogo do inferno todas as filhas do pecado que se entregam à lascívia e à libertinagem! Chega de sem-vergonhice! Chega de pornografia! Você pecou. Você prevaricou. Você destruiu lares honestos exibindo a vagina do mal, a vagina da discórdia. Você vai ter que pagar! (PARTINDO PARA CIMA DA GAIOLA, FURIOSO) - Boiadeiro vai enforcar essa desgraçada! Boiadeiro vai estrangular a megera que atentou contra o pudor desta comunidade santa e imaculada. Boiadeiro vai... (ENTRA UM POLICIAL HIPOTÉTICO E "APLICA" UM SOCO EM CRISTIANO, QUE CAI ATORDOADO) (VOLTANDO AO NORMAL) - Ih, parece que peguei mal... (OUTRO SOCO, OUTRA QUEDA) - Peraí, peraí, seu guarda! Eu estava apenas brincando... fazendo de conta. (VAI SENDO ARRASTADO PARA FORA DA CELA, AOS GRITOS) - Ai, ai, bate mais devagar! Ai, ai, pau-de-arara, não! Eu confesso. Eu confesso. (CONTINUA SENDO LEVADO. AGORA, OUVEM-SE APENAS SEUS GRITOS). (UMA CENA COMUM DE TORTURA).
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3º QUADRO
(CRISTIANO VOLTA À CELA. VEM COM O BRAÇO DIREITO NA TIPÓIA E MARCAS DE SANGUE NO CORPO SEM CAMISA. VEM MANCANDO E SE LASTIMANDO) - Pô, assim vocês vão acabar me matando. Não se pode mais nem brincar... (LEVA UM EMPURRÃO E VAI PARAR JUNTO À GAIOLA) - Você está rindo de quê? É como dizia o filósofo Nenen Prancha: "Pimenta nos olhos dos outros..." Eu queria ver é você lá, pendurada no pau-de-arara, com uma mangueira enfiada no rabo e 220 volts no bico no peito. (PAUSA) - Mas você poderia ter dado uma mãozinha, explicado pros homens que eu estava fazendo de conta. Poderia ter inventado uma história qualquer. (PAUSA) - Sei lá... pra quebrar a rotina. É chato ficar aqui esse tempo todo, sem nada pra fazer. Não sei como é que você agüenta. (OLHANDO PARA UM PONTO FIXO) - Você já rangou? Cadê o meu? (PAUSA) - E por que você não mandou ele deixar a marmita aqui na cela? (PAUSA) - Mas claro que eu queria. Disse aquilo apenas por dizer. Você acha que eu vou ficar o tempo todo aqui sem comer nada? Ora, ora, e agora? (PAUSA) - Será que ele compra mesmo? Eu ando tão desconfiado desse povo... (PAUSA) (APALPANDO A TIPÓIA) - Ai! Já que você insiste, vou tentar. (GRITA PARA FORA) - Carcereiro, ô carcereiro! ("CHEGA" O CARCEREIRO QUE SÓ CRISTIANO VÊ) - É o seguinte: meu rango, hoje, foi uma sessão de pau-de-arara. Quando voltei do quartinho dos horrores, o carrinho da gororoba já tinha passado... (PAUSA) - Eu sei que não tem mais, vocês devem ter comido tudo, mas é que estou morrendo de fome. (PAUSA) - Eu só quero um favorzinho seu. (PAUSA) - Isso mesmo! Será que dava pra você comprar um entala-gato pra mim? (ENFIANDO A MÃO NO BOLSO) - Ajuda a tirar aqui. Leva essa de cinco mil. Eu só quero um cachorro-quente, uma latinha de cerveja, um maço de Plazza... (PARA A GAIOLA) - Você quer alguma coisa? (AO CARCEREIRO) - Traz uns dois pastéis pra ela também. (O CARCEREIRO SAI. CRISTIANO VOLTA A FALAR COM A GAIOLA) - Agora não sei se doem mais as pancadas no lombo ou as tripas no bucho. (PAUSA) - Você se lembra do que estávamos conversando antes daquela brincadeira do Boaideiro? (PAUSA) - Ah, é, os ídolos de barro. É como eu dizia: tem gente que, na falta de uma fé mais segura, na falta de um deus verdadeiro, se apega a animais, bichinhos de estimação. Taí, eu sou vidrado em pássaros. (PAUSA) - Qualquer um. Evidentemente, há pássaros que são mais bonitos, outros que cantam melhor. Mas o que me impressiona nos pássaros é o senso de liberdade. Você conhece o bico-de-lacre? (PAUSA) - É muito encontrado nos chapadões de Minas. Fica na beira da estrada, dando seus pulinhos... É a única coisa que sabe fazer, mas faz com uma competência fora do comum. Eu crio passarim desde menino. Chapinha, belga, pintassilgo, jandaia, sabiá, crio de tudo. (PAUSA) - Mas não é muito melhor mantê-los na gaiola do que deixá-los soltos no mundo? Lá, eu cuido deles direitinho. Dou comida todo dia, troco a água, trato deles como se fossem gente. Agora, já pensou se estivessem soltos por aí, entregues à depredação, fugindo dos projetos de reflorestamento, levando chumbo de caçadores desalmados e pedradas de meninos malvados? Você acha que é errado, que eu não posso falar em liberdade se mantenho os pássaros presos, mas, para mim, liberdade é conforto. É ter o que comer todo dia, estar em paz com a consciência, assistir ao programa de televisão que quiser, dormir na hora que achar melhor, trepar quando bem entender. Liberdade pra mim é a satisfação do cotidiano. Por isto, meus pássaros, mesmo engaiolados, são livres e felizes. Porque nada falta a eles. Meus pássaros são a extensão da minha vida, a liberdade que falta em mim. (PAUSA) (REPENSANDO) - Conversa! Tem nada disso não. Há pássaros que só vivem em gaiolas... São os pássaros de cativeiro. O belga, por exemplo, não dá um passo fora da gaiola. O curió também. Você só tem que cuidar direitinho e torcer para que os filhotes não morram de frio. (PAUSA) - Por falar em frio, me veio a idéia da fome. Minha barriga tá roncando cada vez mais. Não sei se vou agüentar a volta daquele carcereiro mau caráter. Engraçado, tem só umas poucas horas que não como e já estou batendo pino. Já pensou essa gente que passa dois, três dias, até uma semana sem comer? (TIRA A TIPÓIA) - É, a situação do Brasil tá de matar de chapéu. (DISCURSANDO) - Minha gente, se eu for eleito presidente da República, prometo dar prioridade ao drama da fome. Encherei a panela dos sem-sal através de um amplo programa que dará assistência integral ao trabalhador rural. Os descamisados terão escola de graça para seus filhos, hospitais cinco estrelas, cinemas panorâmicos, TV em cores, pista de patinação e jet sky. Tudo farei, sem mexer na poupança de minha gente, para extinguir o êxodo rural, impedindo que o pobre lavrador abandone sua terra e vá morrer atropelado num eldorado que se chama cidade grande. Mesmo contra o sapo barbudo, implantarei a reforma agrária, para que os grandes usineiros dividam seus latifúndios com os sem-terra. Darei ênfase à alimentação dos recém-nascidos, reduzindo os índices de mortalidade infantil no Nordeste brasileiro. Se contar com o apoio de minha gente, colocarei em prática o Plano do Ovo e do Leite elaborado pela República das Alagoas: todo estudante terá direito a um ovo de galinha e um copo de leite, todas as manhãs, o que não só eliminará a pecha da fome como contribuirá para o melhor desempenho de nossos atletas nas olimpíadas da vida. O salário do trabalhador será estipulado em 500 dólares, pagos semanalmente, para que minha gente possa suportar a alta diária da Unidade Real de Valor, a famosa URV do FHC. Minha gente, vou dar uma porrada na balbúrdia administrativa, acabando com os corruptos e os marajás. E um tiro certeiro na inflação, que nunca mais voltará a sujar a cueca dos sem-calça. Minha gente, vote em mim. Porque, votando em mim, minha gente jamais ostentará essa cara de tristeza, desnutrição e miséria que fazem do meu povo o povo mais sofrido da face da terra. Minha gente, a exemplo de todos os grandes homens - de Truman a Fidel Castro, de Napoleão a Yeltsin, de Luiz XV a Getúlio Vargas -, eu vim do pó. Já lasquei lenha para sobreviver, já dei duro no trato da terra, já engraxei os sapatos de Sarney e capinei as ruas de Exu. Sou humilde como o mais humilde dos homens e, exatamente por manter essa coerência, sinto o drama da minha gente. Em 3 de outubro, vote na modernidade, vote na privatização, vote na volta da LBA, vote na volta da Casa da Dinda, vote neste atleta que... (O CARCEREIRO ESTÁ DE VOLTA) - Güenta aí, cara, não vê que estou fazendo minha campanha pra presidente? (UMA LATA DE CERVEJA É ATIRADA A SEUS PÉS) - Minha gente... (APANHANDO A CERVEJA) ... é maravilhoso sentir a evolução dos descamisados. Quando me iniciei na vida pública, no século passado, fui saudado num comício na Praça da Sé com uma dúzia de ovos podres. (EXIBINDO A LATA QUE, DEPOIS, COLOCA DE LADO) - Hoje, aquela cena é lembrada apenas como uma nódoa do subdesenvolvimento, do coronelismo, porque minha gente cresceu em educação e sabedoria. (UM MAÇO DE PLAZA É ATIRADO EM CRISTIANO, QUE O PEGA DE QUALQUER JEITO) - Agora, vocÊs me saúdam com latas de cerveja e maços de cigarro. Pois saibam que meu governo lutará bravamente contra o fumo e o álcool, evitando que milhares de cidadãos continuem morrendo dos pulmões, da carótida e do câncer provocados pelo hábito de fumar. Meu governo não permitirá que milhares de famílias sejam destruídas pelo álcool. (ELE MESMO SE VAIA) - Uuuuuuuuh! Uuuuuuuuh! Viva a cachaça! Viva! Viva o bebum! Viva! (ABRE O MAÇO E ACENDE UM CIGARRO) - Eu entendo as vaias de vocês. Claro, claro, o lenitivo de muitas pessoas que se encontram deprimidas ainda são o cigarro e a bebida. Fumando, a fome desaparece, os problemas se evaporam. Bebendo, os estudantes criam coragem para colar e o rapaz tímido ganha força para chamar a mocinha serelepe para dançar. (O CACHORRO-QUENTE É AGARRADO NO AR POR CRISTIANO) - Vejam, este é o símbolo da fartura, da comida para todos, da panela cheia da minha gente. Nesta longa, penosa e cívica jornada pelo interior do meu país, fico até duas semanas sem provar comida de sal. Após noites em claro, palmilhando os mais longínquos grotões, satisfaço minha vontade comendo sanduíches como este que minha gente jogou aí de baixo. (COMENDO O CACHORRO-QUENTE) - Em busca da salvação nacional, eu perdi a cerimônia. Como aqui mesmo, na vista de minha gente, que é para não perder tempo. Tenho muito o que fazer ainda, são muitas as comunidades que esperam por mim. (AGORA SÃO DOIS PASTÉIS QUE SÃO ATIRADOS EM CRISTIANO) - Ah, vocês me mandam pastéis também. Pois saibam que esses pastéis representam o meu respeito à oposição. (APANHANDO OS PASTÉIS) - Meu governo será de todas as tendências, de todas as ideologias. Neste momento solene, tão importante na minha peregrinação democrática, entrego a fatia do meu próprio sustento à oposição brasileira que, como prenúncio da conciliação futura, se dispõe a seguir nossa caravana do amor. (ABRE A GAIOLA E JOGA OS PASTÉIS LÁ DENTRO) - Minha gente, esteja certa de que meu governo haverá de distribuir não só a mesada do presidente, como toda a renda nacional entre os pobres e banidos da sorte. O lucro das empresas multinacionais será dividido entre os verdadeiros brasileiros, razão maior deste gigante adormecido em berço esplêndido. E para encerrar minha oração, transfiro aos descamisados brasileiros o maior símbolo do sofrimento a que estou sendo submetido desde que decidi lançar uma candidatura civil, honesta e varonil à presidência da República. (TIRA A TIPÓIA E A JOGA PARA A PLATÉIA) - Façam deste símbolo da opressão o que fizeram os soldados de Pilatos com as vestes de Cristo: rasguem-no e sorteiem os pedaços entre vós. Muito obrigado, minha gente! Eu preciso de vocÊs! (RINDO, À GAIOLA) - Ah, ah, ah! Que sarro, minha nega. Tirei a maior onda e o povão de boca aberta, acreditando que eu sou, realmente, uma opção civil para o poder, que tenho planos milagrosos para acabar com a miséria do país. Ah, ah, ah, quanta ingenuidade! Mas você sabe por que eles acreditam? É porque o povo não aprendeu ainda a desconfiar dos políticos. Eles chegam, prometem mil e uma coisas e o povo põe fé, vota nos demagogos, bate palmas para mentiras como as que acabei de contar. (PAUSA) - Mas você não falou que só queria pastéis? Se tivesse pedido o refrigerante... Cadê aquele carcereiro sem-vergonha? (PAUSA) - Mas que filho da puta! Aproveitou que eu tava curtindo uma de candidato, jogou a bagulhada na cela e se mandou... Esperto, hein? (PAUSA) - É a corrupção. Não adianta um passarinho de óculos montar mil e uma CPIs lá em cima se o mal começa aqui embaixo. Engana aqui, engana ali, cassa um aqui, põe outro na sala do delegado acolá. Aí, ó, o povo esquece e tudo acaba em pizza no restaurante do Congresso. Bom, é melhor não falar muito, não, senão acabam me levando de volta pro pau-de-arara. Mas que têm uns camaradinhas picaretas neste Brasil, lá isso tem. (PAUSA) - Pois não é? Cinco pratas pra comprar umas besteirinhas dessas e não sobra nem uma URV de troco!? Vai ver jogou o resto no bicho. Se tivesse pelo menos a sorte do João Alves... (PAUSA) - Que idiota que eu fui: fazendo campanha política e um moleque me corroendo pelas costas... Você pensa que eu importo? Meu consolo é que tem muita gente boa por aí sendo assaltada por esses marginais de carteirinha e ninguém fala nada. (PAUSA) - Eu, chamar a polícia? E ia adiantar? Deixa pra lá, cinco mil não são nada em relação aos bilhões de dólares que continuam desviando dos canais competentes. (CRISTIANO É NOVAMENTE "ARRASTADO" PARA O QUARTINHO DOS HORRORES E SUBMETIDO A OUTRA SESSÃO DE TORTURAS. GRITOS E PANCADAS).
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4º QUADRO
(DEPOIS DA MÚSICA DE FUNDO - BG -, CRISTIANO VOLTA, AGORA COM O BRAÇO ESQUERDO NA TIPÓIA) (À GAIOLA) - Dá pra entender? Naquela brincadeira do Boiadeiro, mutilaram meu braço direito. Agora, porque me ufanei de ser brasileiro, scrificaram meu braço esquerdo... Já veio a sopa? (PAUSA) - Outra vez? E agora? Não vai dar pra comprar nada. Além do carceiro ter levado meus cinco paus, os homens da tortura tomaram os trocadinhos que eu tinha no bolso. Até uma moedinha de 50 pratas... (PAUSA) - Não, não, Deus toma conta. É nesta altura do campeonato que o brasileiro eleva o grito de desabafo e desmoraliza o estigma da desnutrição galopante com um copo de cerveja. (PEGANDO A LATA DE CERVEJA) - O programa nacional pela vida e contra a fome e a miséria, por mais ambicioso que seja, não conseguirá substituir à altura o mais suculento alimento dos menos afortunados. Está aqui (LEVANTANDO A LATA) ... o consolo de milhões de seres humanos que, no fim do expediente, cansados e desiludidos, entram num boteco e arrotam todo o poder, gritando bem alto: "Eu quero uma cachaça!" Uma cachaça e uma pitadinha de sal, porque a grana mal dá para pagar a dose. (ABAIXANDO A LATA) - É verdade que, muitas vezes, o homem bebe apenas para ficar triste, para mergulhar ainda mais em seus problemas, suas aflições, seus conflitos existenciais. Mas a suprema glória (LEVANTANDO A LATA) daqueles que buscam um sorriso amigo, uma palavra de conforto, sobre um copo de cerveja, é poder dar uma banana para as convenções sociais, os tabus vigentes e a força que vem da Corte, mandando tudo e todo mundo para a puta que pariu. Ergamos um brinde ao descompromisso do homem como ser carente e frágil, que se satisfaz no tropeço da bebedeira nacional, vomitando complexos e decepções sobre o caos generalizado. (PÕE A LATA ENTRE AS PERNAS E SOLTA A CERVEJA, COMO SE FOSSE CHAMPANHA) - Pelo existencialismo de Sartre! Pelo gol que Pelé não marcou! (JOGANDO A CERVEJA NA CABEÇA, PARA CIMA...) - Pela felicidade suprema dos meninos de rua! Pelo sorriso aberto da mãe solteira! Pelo pagamento de todas as dívidas... externas e internas! Pelo idealismo abafado de Martin Luther King! Pelo assassinato covarde do sangue, da garra e da fibra de Henfil, Graúna, Zeferino e todos os baixinhos e compridões do Brasil! Pelo beijo molhado, sentido, abençoado! Pela canção maior do poeta imortal Vinícius de Morais! Pela saudade maluca da pedra atravessada no meio da garganta de Carlos Drummond de Andrade! Pela alma bendita do irrequieto John Lennon! (VOZ PASTOSA) - Pela conscientização dos governantes de hoje, governados de amanhã! Pelo aumento do número de escolas! Pela queda do número de cadeias! Pelo hoje, pelo amanhã, pelo agora e pelo sempre, ergamos um brinde à liberdade pura e verdadeira, a liberdade de se sentir pleno de alegria ante às amarguras da vida. Plim, plim... (JOGANDO A LATA PARA CIMA) - Viva a liberdade! (BAIXINHO, QUASE SUSSURRANDO) - Viva... (CAMBALENADO ATÉ A GAIOLA - VOZ DE BÊBADO AINDA) - Deixa eu dar um beijo em você. (PAUSA) - Não, não, eu gosto de você. (VOZ NATURAL, SÃ) - Pra mim, o amor é fundamental. E quando duas pessoas se amam, não existe preconceito que possa desuni-las. Nélson Rodrigues diz que o beijo é a posse, mas eu vou além: o beijo é o tudo consumado. A posse, a conquista, a franquia, a consciência, a entrega e a doação. O beijo é a maior realização dos homens que amam de verdade. (PAUSA) - Mas eu juro pela alma da minha finada mãe que é verdade. (PAUSA) - Desde que te vi, me assaltou um calor ardente que, tenho certeza, jamais desaparecerá. Você é a única mulher da minha vida. A mais bela, a mais formosa, a que aprendeu a me entender mesmo coberta por um silêncio profundo. (PAUSA) - Não, nunca, jamais diria isso a outra mulher. Essa sua teoria é fajuta: você não pode dizer, nunca, que sou como um pássaro que vive de galho em galho, bicando aqui e ali. E se você me considera tão leviano ao ponto de ter um pavilhão cheio de pássaros e não amar nenhum deles, então você já não me entende mais. (PAUSA) - Se você não acredita, tudo bem. Mas é a a pura verdade. Pena que você esteja em outra cela, senão eu iria mostrar a seriedade da minha paixão única e verdadeira. Amo você como a própria extensão da minha vida. E você diz que é poesia, coisa que se diz pra tudo mundo... (PAUSA) - Pois fique sabendo que não sou nenhum prostituto. Puta é você! Quer dormir comigo? (PAUSA) - Ora, dê um jeito, arranje uma serrinha e vem pra cá. (PAUSA) - Ah, é assim, né? Pois se alguém trouxesse uma serra pra mim, dentro de um abacaxi, eu jamais fugiria, como você tentou fazer. Eu abriria sua jaulinha, entraria aí dentro e ia brincar a noite inteira com você... Seria a noite mais bonita da minha vida, a noite da minha realização plena e absoluta. (PAUSA) - Você, que está aqui há mais tempo, pode imaginar quantas horas são? (PAUSA) - Nove da noite??? Meu Deus, perdi mais um capítulo da novela... Bem, já que não tem outro jeito, vamos dormir. Não dá nem pra chegar um pouquinho aqui? (ENCOSTANDO-SE NA GAIOLA) - Eu acho que dá. Assim, ó: você tira a roupa e eu também. Aí você encosta sua precheca na grande (ROÇA A GAIOLA)... e a gente, ó... (GESTO OBSCENO) - Oh, não, de jeito nenhum! Eu estava apenas brincando... como sempre. Não já disse que o sexo só pode vir depois do amor? Pena que essa nova geração esteja trocando tudo. Mas o comportamento certo é este: primeiro, a gente sente o visual da pessoa; depois, conhece a sua alma, o espírito; vem então aquela fase gostosa da troca de informações, quando um fica sabendo o grau de sensibilidade do outro. Só a partir daí é que se passa ao conhecimento dos corpos e, finalmente, ao sexo, como consumação maior do amor. Mas a geração 64 trocou as bolas: vai direto ao sexo e, quando pensa em conhecer o espírito, já é tarde demais. Daí vêm a frustração, o nojo, o desejo não satisfeito, a sensação de fel de quem comeu e não gostou. (PAUSA) - Olha, pode parecer exagero, mas é grande o número de casamentos que desmoronam pela falta da observação dessa regrinha aparentemente simples. É por isso que tantas mulheres se queixam de nunca ter tido um orgasmo sequer com seus maridos. Algumas se satisfazem muito mais com a mangueirinha do chuveiro esguiçada no clitóris do que com a piroca do marido enfiada na xoxota. Outras partem para o lesbianismo, vão se relar com a empregada. (PAUSA) - Mas que diabo, você não tá nem aí para o que estou falando... Um assunto tão sério e você cochilando... Ah, vá pra merda! (PAUSA) (CRISTIANO SE PREPARA PARA DORMIR. PEGA O COBERTOR, DEITA-SE E ORENA À GAIOLA) - Apaga a luz aí! (TODAS AS LUZES DO TEATRO SÃO APAGADAS) - Peraí, também não precisa ser esse breu, não! Cadê o abajur? (LUZ EM RESISTÊNCIA, BEM FRACA) - Boa noite, madame!
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5º QUADRO
(CRISTIANO ESTÁ DORMINDO, INQUIETO. COBRE ATÉ A CABEÇA COM O COBERTOR E, ENQUANTO ISSO, TIRA O BRAÇO DA TIPÓIA. ESTÁ SONHANDO, COMEÇA A SE LEVANTAR LENTAMENTE, SAI DA CELA, ZANZANDO PELO PALCO, ATÉ ACHAR UM VIOLÃO. SENTA-SE E COMEÇA A ARRANHAR AS CORDAS) - Passei três meses mexendo com essa porcaria e até hoje não saí do ... (CANTANDO) ... "Sereno, eu caio, eu caio/Sereno, deixa cair/Sereno da madrugada/Não deixou meu bem dormir/Minha vida, ai, ai, ai..." (ASSUSTANDO-SE) - Ué, cadê o violão? (OLHANDO MATERNALMENTE PARA O VIOLÃO, CONVERTIDO EM SEU PRÓPRIO "FILHO") (VOZ FEMININA) - Oh, meu filhinho, tá com fominha, tá? Quer mamar, quer? Hum, cheirinho da mamãe. Chora não que mamãe vai dar papá, tá? (DANDO O PEITO AO "MENINO") - Mama, meu filhinho, mama. Mama que, segundo a Fafá de Belém, o leite materno é o melhor alimento do mundo. (VOZ MASCULINA) - Mama que o seu pai tá sem emprego e o leite subiu 70 por cento, no preço e na água... (VOZ FEMININA, ACARICIAND0 O VIOLÃO) - O leite tá ralinho, né nenê! Hum, tá um rapagão que dá gosto... (À MEDIDA QUE O BEBÊ VAI MAMANDO, A MÃE VAI SENTIND0 UMA EMOÇÃO FREUDIANA) (COMEÇA A REQUEBRAR, SUSSURRA, JOGA A CABEçA PARA TRÁS) - Mama mais, tesão! (AINDA VOZ FEMININA) - Ai, gostoso! Mama tudo, mama! Ai! Assim, dói. Morde não, meu amor. Aí, aí, assim. Hum, que gostosura. Ai, ai, acho que vou... ai, ai... (PÕE O VIOLÃO NO CHÃO) - "Ser mãe é padecer no paraíso". (VOZ MASCULINA) - Esta frase deveria ser do Freud... (AGORA, NO SONHO, O VIOLÃO É A MULHER AMADA, A QUE CAUSOU A PRISÃO DE CRISTIANO) (AINDA VOZ GROSSA) - Você viu em que fria eu entrei? Bem que te avisei: um dia iam acabar descobrindo. Você precisava ver o delegado dando aquele sabão e eu lá, negando tudo. Neguei até a autoria daquela carta. (PAUSA) - É, ele chegou com a carta e com minhas chaves. (PAUSA) - E o que eu poderia fazer? Disse que tudo era mentira, que a carta era falsificada, que alguém deve ter colocado o chaveiro no seu criado... (PAUSA) - Aceitou, nada. Me colocou no xadrez e... mas o que é que aquilo lá tem a ver com isto aqui? Nossa, você está maravilhosa com essa camisolinha! (ACARICIANDO O VIOLÃO) - Espere, só quero ver se continuam do mesmo jeito. Já disse e repito: nenhuma mulher do mundo tem seios mais explosivos que os seus. (PAUSA) - Que maravilha, meu bem! (ABRAÇANDO O VIOLÃO) - Eu estava com tanta saudade de você! Pensei que nunca mais ia sair da cadeia... (PAUSA) - Ai, não aperta assim não que você acaba me castrando. Dá uma mordidinha aqui na orelha, dá! (PAUSA) - Hoje, nós só vamos parar quando trovejar. Ai, ai, ai... (VAI ENCOSTANDO O VIOLÃO NO CHÃO, ATÉ DEITAR SOBRE ELE E INICIAR OS MOVIMENTOS DE UM ATO SEXUAL). (O TELEFONE TOCA. CRISTIANO SE LEVANTA CONSERTANDO A ROUPA) - Sei lá... (PAUSA) - Ligaram pro seu telefone celular?!? (PAUSA) - Só pode ser gente conhecida... (PAUSA) - Peraí, seu marido sabe que você tem outro homem??? (PAUSA) Mas, claro, que loucura! Pois ele me viu na cadeia e tudo. Deixa que eu vou atender. (AO TELEFONE) - Alô! (PAUSA) - É, sim senhor! (PAUSA) - Ah, o senhor é aquele que estava na delegacia? (PAUSA) - Claro que ela está. O senhor acha que eu estou aqui fazendo o quê? (PAUSA) - É isso mesmo. E tá danado de bom. Será que o senhor não poderia ligar outra hora? (PAUSA) - É o marido, mas quem está sobre o domínio da coisa sou eu, entende? (PAUSA) - Mas eu não sou culpado de sua mulher não conseguir gozar com o senhor. Não tenho nada a ver com suas ejaculações precoces. (PAUSA) - Mas ela me ama, uai! E tem uma coisa que eu gostaria que ficasse bem clara: sua mulher só se satisfaz comigo. Ela me disse que a única vez que teve prazer com o senhor foi quando vocês se conheceram, lembra-se? Ela chegou e disse: "Muito prazer!"... Oh, oh, oh... (PAUSA) - Pois se o senhor ama verdadeiramente sua mulher, o que o senhor tem que querer é a felicidade dela, nada mais. E pode estar certo de que sua querida esposinha está imensamente feliz neste momento. (PAUSA) - Pois eu acho uma bruta ignorância de sua parte. Não adianta nada: o senhor me mata, mas minha morte não vai resolver o problema de vocês. (PAUSA) - Peraí, moço, eu estou falando com educação, não maltratei ninguém, então, exijo respeito também. Aqui na minha casa... (PAUSA) - A casa é do senhor, mas quem está mandando agora sou eu, tá bom? (PAUSA) - Venha, mas venha armado, tá sabendo? Estou esperando. De cacete armado! (BATE O TELEFONE) (NOVAMENTE AO VIOLÃO) - Mas que desaforado! Você acredita que ele teve a descompostura de dizer que vai dar um tiro na minha boca? (PAUSA) - Mata nada. Aquilo é um corno manso de primeira. (PAUSA) - Esconder pra quê? Você pensa que eu tenho medo de um safado como esse seu marido? (PAUSA) - Não tem problema. Vá tomar seu banhozinho que eu fico aqui esperando. (PAUSA) (CRISTIANO APALPA A CINTURA) - Ih, esqueci o revólver no carro. (TOQUE DE CAMPAINHA) - É ele! (SORRATEIRAMENTE, VAI CAMINHANDO DE VOLTA À CELA. ENTRA, DEITA-SE E SE COBRE NOVAMENTE, VOLTANDO A COLOCAR O BRAÇO ESQUERDO NA TIPÓIA. COMEÇA A GRITAR) - Não entra não que eu atiro! Sai pra lá, mulher! Pam, pam, pam... (DÁ UM PULO, CANSADO E SOBRESSALTADO) (AS LUZES SE ACENDEM) - Anh, anh?!? Quem foi que me chamou? (ALIVIADO, À GAIOLA) - Ah, foi você! Nossa, foi um sonho maravilhoso. (CONSERTANDO) - Um sonho, não, foi um pesadelo. Sonhei que estava, como diria... (CONFUSO) ... aliás, que estava não, ora essa, sonhei que tinha acertado sozinho na loto. (PAUSA) - Que tiros??? (PAUSA) - Eu? Ah, já sei, eram os foguetes. Estava tão feliz com tanto dinheiro, que comecei a soltar foguetes pra tudo quanto é lado. (PAUSA) - Quem disse isso? Ah, foi um ladrão que chegou querendo tomar minha fortuna. Aí, eu gritei: "Não entra não que eu atiro!" Mas eu estava falando tudo isso? O que foi mais que eu disse? (PAUSA) - Ainda bem... (PAUSA) - E você, sonhou com quê (PAUSA) - Bobagem, nada. Está provado cientificamente: quem sonha tem uma vida mais saudável, vive mais tempo, come mais... Quem não sonha vive em constante tensão. Aliás, o stress ataca muito mais as pessoas materialistas, que só pensam no concreto, no real. (PAUSA) - Sonhar preto e branco, sonhar colorido, sonhar dormindo, sonhar acordado. Eu vivo sonhando. Minha vida é um eterno sonhar. Por isto eu não me sinto preso a nenhum esquema, a nenhuma forma de escravidão. Só é feliz quem sonha. Quem não vive para sonhar, não serve para viver, já disseram os rotarianos... (PAUSA) - E daí? Adianta ficar desesperado com essa prisão de merda, se eu posso ultrapassar estas grades e viajar indefinidamente pelos caminhos da liberdade? (PAUSA) - Gosto, gosto demasiadamente de sonhar com as estrelas. É o jeito que eu encontro de chegar até elas. Aliás, sonhando eu me realizo em todos os sentidos. (PAUSA) - Você, minha liberdade? Conversa... Ainda mais você, uma mulher que prefere palmilhar a dura realidade a desenvolver vôos fantásticos pelo mundo da mágica. Você jamais encarnaria a minha liberdade. Acredito em você, confio em você, juro que estou fazendo a mais espetacular das viagens, que é a viagem para dentro de mim mesmo. (PAUSA) - Você me ensinou, nesses poucos momentos de convivência íntima, o que eu não aprendi em toda a minha vida lá fora. Foi aqui que tive a humildade de colocar minhas contradições em xeque; foi com você que aprendi a acreditar na vida como única opção de luta razoável. (ENTRA "ALGUÉM" NA CELA E CRISTIANO SE VOLTA PARA OLHAR. É O "MARIDO TRAÍDO" QUE ACABA DE SER PRESO) - O senhor?!? Não me diga que vai continuar me acusando aqui dentro! (PAUSA) - Calma, calma, o que é que aconteceu? Quer um copo d'água? (PAUSA) - Assim o senhor não vai conseguir falar nada. Por que é que trouxeram o senhor pra cá? (PAUSA) - O quê? Como? Quando? Onde? Por quê? (PAUSA) - Que absurdo! (À GAIOLA) - Você ouviu? (AO "HOMEM") - Mas que loucura! Continue, continue... (PAUSA) Ela, traindo o senhor de verdade? (PAUSA) - Cinco tiros? (PAUSA) - E essa mancha de sangue aí? (PAUSA) - Dele? O Ricardão? Então fez muito bem! (À GAIOLA) - Que susto! Pensei que nunca mais iria concretizar o sonho de ontem à noite... (PAUSA) - Já sei, já sei. Ele disse ao telefone que não era culpado de suas ejaculações precoces? (PAUSA) - Disse que sua mulher só teve prazer quando conheceu o senhor? (PAUSA) - Que o senhor é o dono, mas quem mandava na casa era ele? (PAUSA) - Que a morte dele não ia resolver o problema do casal? (PAUSA) - Então, quem estava lá era eu... (CONFUSO) - Tudo igualzinho ao sonho que tive essa madrugada... (À GAIOLA) - o sonho da loto... (AO HOMEM) - E eu é que vou saber? Só que o dito cujo que o senhor matou, no sonho era eu. (PAUSA) - Pois então? Não é estranho tudo isso? (PAUSA) - É, vamos esquecer o sonho. E ela, o senhor atirou na descarada, também? (PAUSA) - Que alívio! (PAUSA) - Não, não, é que eu fiquei pensando: se o coitadinho matou um só e não dois, a pena pode ser muito menor. Ainda mais que virou moda matar mulher e sair livre do júri. É absolvição na certa! (PAUSA) - Mas que miserável! Eu, sonhando aqui, e ele lá, na boa... Bem feito! Estava armado? (PAUSA) - Ah, esqueceu o revólver no carro. Mas que coincidência, seu moço! Bem, agora que está provado que sua patroa tinha outro homem, mas que esse homem não era eu, porque eu estava aqui, preso e manietado, e afinal o defunto não é o meu, como é que fica tudo isso? (PAUSA) - Mas o senhor me acusou, não foi? Apareceu com um carta dizendo que era minha, balançou um chaveiro na minha cara, dizendo que era meu e fora encontrado na cama do casal. Enfim, o senhor é o responsável direto pela minha prisão. (PAUSA) - Perdôo, sim, mas o senhor vai ter que desmentir tudo pro delegado. (PAUSA) - Como não precisa? E se ele cismar que sua queridinha esposa tinha uma dúzia e não um homem apenas, hein? (PAUSA) - Mas que sem-vergonha! Trepou e ainda teve coragem de contar pro sócio... (PAUSA) - Ih, lá vem o carcereiro de novo. Olha, aqui todo mundo é boa-praça, mas tem um carcereiro que é um ladrãozinho de primeira. Pssst, depois eu conto, que ele já tá chegando. (CHEGA O "CARCEREIRO") - Eu?!? (PAUSA) - Viche, já tá todo mundo sabendo? Mas ele deu bobeira, tinha que matar era a mulher. Quer dizer, depois de eu...
*** *** *** ***
6º QUADRO
(CRISTIANO CHEGA à SALA DO DELEGADO, NO 1º SET. ESTÁ BEM VESTIDO, SEM A TIPÓIA. SENTA-SE NA MESMA CADEIRA DO 1º QUADRO) - Vai me interrogar de novo? (PAUSA) Já sei, já sei, ele me contou tudo. Não falei que eu não tinha nada com o peixe? Ou o senhor ainda acha que sou culpado? (PAUSA) (ASSUMINDO O CONTROLE DA SITUAÇÃO) - Mas, para que isso acontecesse, foi preciso que um ser humano levasse cinco tiros, não é? Quer dizer que se o marido não tivesse pegado a mulher em flagrante, eu ficaria aqui a vida toda, mofando feito advogado da Previdência... Não tem indenização pra esses casos, não? (PAUSA) - Tem umas coisinhas que eu deixei lá na sala dos detetives: um revólver, que carrego comigo apenas por precaução, meus documentos... (PAUSA) - Está registrado, sim! O comprovante tá junto com os documentos. (PAUSA) (OLHANDO PARA A EXTREMIDADE DA MESA) - É este sim, seu delegado! Engraçado, eu pensando que estava lá na sala dos detetives e nem tinha visto que o senhor estava fazendo serventia dele... (AVANÇA E PEGA O REVÓLVER) (MANUSEANDO A ARMA E COLOCANDO-A NA CINTURA) - Este revólver pertencia a meu avô. Foi a única herança que deixou. Dizem que já fez muito nego correr, fora os que mandou pro inferno. Mas hoje, não. Eu não tenho coragem de matar nem uma galinha. Uso apenas para me segurar no meio dessa violência que a televisão anda propagando. (PAUSA) - (PEGANDO OS DOCUMENTOS) - Tá tudo em ordem. (PAUSA) - Foi uma brincadeirinha à toa. Cismei que estava recebendo o espírito de Boiadeiro e comecei a dançar na cela. (PAUSA) - Comunista, eu? Aquele discurso eu fiz só pra quebrar a rotina. O senhor... senhor, nada, você acha que eu acredito naquilo tudo que falei? Acredito porra nenhuma. Quem foi que contou procê? (PAUSA) - Eta carcereiro! Agora, tem uma coisa: o que eu gosto mesmo é de sexo. (PAUSA) - Uso alguns palavrões, gosto de fazer minhas sacanagens, porque eu acho que esse negócio de ficar falando coisas sérias não vai mudar o mundo de jeito nenhum. E, além de não resolver nada, não dá ibope. Já pensou se eu estivesse aqui pregando o falso moralismo, defendendo a tomada do poder, ensinando lições de bom comportamento? Não tinha ninguém pra me escutar. O senhor... senhor que nada, só por que é um delegadozinho de subúrbio? Você também gosta duma revistinha pornográfica, né seu delegas? (PAUSA) - Não, eu detesto esses modismos de suíngue, sexo grupal, cunilíngua, língua no cu, filosofia do corpo. Sexo, pra mim, tem que ser aquele tradicionalão, na base do papai-mamãe. (PAUSA) (RINDO) - É gostoso, né? (PAUSA) - Vem cá, vem cá, aquela mulherzinha que tá presa parece que não é muito chegada não, né? É sapatão? (PAUSA) - Ué, então você não sabe que tem uma mulher presa aqui? (PAUSA) - Presídio masculino? O que é isso, Entendido? Pois se eu conversei com ela, ela disse que é minha liberdade... (INTERROMPIDO) - Passarim? Você está brincando... (PAUSA) - Naquela cela ao lado da minha? Pois ontem à noite nós quase nos relamos... (PAUSA) - Quer dizer que eu quase comi um passarim pensando que era uma Malu Mader? (PAUSA) - Mas que cafajeste! Será que estou ficando maluco? Papeando o tempo todo com um passarim, pensando que era uma mulher... (PAUSA) - É, de fato. Você já deve estar acostumado, né? Eu estava meio zonzo, confesso. Tudo aconteceu tão de repente. Agora é que estou melhorzinho. (PAUSA) - Estive internado no Pinel, mas foi há muito tempo. Por causa da bebida... Por loucura, mesmo, nunca tive problema, não. (PAUSA) (PENSANDO EM VOZ ALTA) - Mas que miserável! Fazendo de mim um bobo e eu lá, falando, falando, me tesando todo. Ô delegado, será que eu poderia dar um pulinho lá na cela, só pra conferir? (PAUSA) - Obrigado, Bacana! (SAI).
*** *** *** ***
7º QUADRO
(CHEGANDO À CELA E SE DIRIGINDO À GAIOLA, REVÓLVER EM PUNHO) - Sua filha da puta! Quer dizer que você me traiu o tempo todo, não é? Disse que tinha urinado na rua; que estava me amando perdidamente; que era mãe solteira; (SEMPRE APONTANDO O REVÓLVER PARA A GAIOLA) - Que a comida vinha com barata; que gostava de macumba. Bandida! E ainda me censurando por prender os meus pássaros... E fazendo eu ficar aqui encenando uma sessão de quimbanda só pra agradar... Sua casca de ferida! (ENFIA A MÃO NA GAIOLA E RETIRA OS PASTÉIS) - Me dá esses pastéis aí, que um passarim curraleiro como você não come pastel, não. Você come é bosta, tá sabendo? Bosta!!! (JOGA OS PASTÉIS FORA) - Quer dizer que é porisso que você concordava com todas aquelas baboseiras que eu dizia... E ainda me fez mentir, dizendo que tinha sonhado com a loto, só pra não causar ciúme. Pois sabe de uma coisa? Eu sonhei foi com uma mulher, sacou? Uma mulherzona gostosa, tesuda... (OLHANDO DESCONFIADO)... que, com todo respeito, é casada com um cidadão que está aqui perto de nós. (PAUSA) - Que vigarista! O tempo inteirinho pregando moral, dizendo que eu só seria livre se a amasse. Batendo pé firme que era a minha liberdade, e eu feito um palhaço, aceitando tudo. Sua cretina! (CHEGANDO O REVÓLVER PARA MAIS PERTO DA GAIOLA) - Reze o último Pai-nosso que seu fim está chegando. Eu estou livre, livrinho da Silva. Vou me virar no mundo, fazer o que bem entender, ganhar dinheiro, ficar rico, comprar um conversível zerado, comer todas as mulheres do mundo, inclusive a Madonna e a Lady Di... Mas você não, você vai pras profundezas do inferno, de onde nunca deveria ter saído. Vai ser derretida pelo fato de Satã, que é pra parar de mentir, de brincar com os sentimentos alheios, fazendo da vida uma piada infame e de mau gosto. Lá, com um garfo enfiado na bunda, eu quero ver o que é que você vai fazer. (PAUSA) - Não adianta pedir perdão, não! Sai pra lá, seu moço! (ACIONA O GATILHO. NA MEDIDA QUE VAI ATIRANDO, CRISTIANO VAI SENTINDO OS IMPACTOS DOS PROJÉTEIS. ELE E SUA LIBERDADE ESTÃO SENDO ASSASSINADOS)
(CRISTIANO CAI, ABATIDO PELOS TIROS QUE DESFERIU NA GAIOLA, OU MELHOR, NA SUA LIBERDADE)
(ENTRA GRAVAÇÃO COM FALA DO 5º QUADRO: "Acredito em você, confio em você, juro que estou fazendo a mais espetacular das viagens, que é a viagem para dentro de mim mesmo.")



COMO FAZER AMOR EM FAMÍLIA

Uma videopeça de Reginauro Silva

Roteiro baseado no poema QUADRILHA, de Carlos Drummond de Andrade:

"João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.

João foi para os Estados unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história."

BLOCO I

(No telão ao lado do palco)

(ABERTURA EM OFF, COM IMAGENS CONGELADAS DOS PERSONAGENS)

João amava a irmã, Teresa, que amava o pai, Raimundo, que amava a filha, Maria, que amava o primo, Joaquim, que amava a tia, Lili, que não amava ninguém.

"João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história."

(Palco)

JOÃO (AO LADO DE SUA IRMÃ TERESA, LÊ UM LIVRO DE POEMAS, ENQUANTO ELA VÊ UMA NOVELA NA TV)

JOÃO

Abaixa o volume aí.

TERESA

Abaixar por quê? Será que eu não posso ver televisão em paz?

JOÃO

Claro que pode, Teresa, mas não nessa altura. Você não está vendo que estou concentrado nos poemas de Carlos Drummond de Andrade?

TERESA (ALTERANDO A VOZ)

Peraí, João. Assim já é demais. Todo dia você me enche o saco justamente quando estou vendo a novela das oito. Por que você não vai ler lá dentro?

JOÃO (TAMBÉM NERVOSO)

Ah, é? Então você acha que uma novela é mais importante que um livro de Drummond? (SUAVE, DECLAMANDO PARA MARIA, QUE ACABA DE ENTRAR E APENAS RI) "Principalmente, Maria, é dia, dia constante e durante, acima dos cem mil dias, dia só, dia sem dia, sem outro dia que diga tudo que cabe num dia. É dia sem folhinha, sem gala de alvorecer, sem vontade de fluir, sem jeito de findar!!!" (MARIA SAI CORRENDO) (PARA TERESA) E então, você conhece algo mais sublime do que a poesia de Drummond?

TERESA (AOS BERROS)

E eu com isso, Joào? Tá bom, tá bom, vou abaixar o volume.

JOÃO (TERNO)

Meu bem, não é porque é minha irmã, não, mas você é a mais compreensiva criatura que eu conheço. (ABRAÇANDO-A) a maninha que eu mais gosto. (CANTANDO COMO SE FOSSE CRIANÇA) "Sai coquito da quiquita da maninha/Não sai não que eu tou gotando da coquinha".

TERESA (RINDO)

Quer parar com essa brincadeira, seu porco!

RAIMUNDO (ENTRANDO AFOBADO)

O que é que está acontecendo de novo?

TERESA

É ele, pai. Toda vez que estou vendo televisão, João cisma de recitar uns poemas de Carlos Drummond de Andrade.

RAIMUNDO (PARA JOÃO)

Olha aqui, seu moleque. Se você não parar de importunar sua irmã, vou expulsá-lo de casa. Entendeu? Vou expulsá-lo!

JOÃO (AVANÇANDO SOBRE RAIMUNDO)

Qual é o quê, coroa. Você pensa que eu tenho medo de suas ameaças?

RAIMUNDO

Como é que é?

JOÃO

Isto mesmo. De nada adiantam esses seus rompantes. O que interessa, mesmo, é que (DECLAMANDO) "por entre objetos confusos, mal redimidos da noite, duas cores se procuram. Suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora." E viva Drummond!

TERESA

Está vendo, meu pai, o João está ficando louco.

RAIMUNDO

Sempre foi. Mas deixe pra lá, minha filha (ABRAÇANDO TERESA E SAINDO COM ELA) Ainda bem que, na família, existem pessoas lúcidas como você (JOÃO VOLTA À LEITURA SILENCIOSA).

RAIMUNDO (ENTRANDO NO QUARTO COM TERESA)

Meu bem, pare de brigar com o João. Ele é seu irmão, só quer o seu bem, por favor, seja mais flexível com ele.

TERESA

Mas ele está invadindo o nosso espaço, meu pai. E ninguém tem o direito de fazer isto.

RAIMUNDO (AFAGANDO OS CABELOS DE TERESA)

Claro, minha filha, o espaço é nosso, assim como somente nosso é este segredo de amor que nos torna eternamente apaixonados.

TERESA (DANÇANDO AO REDOR DE RAIMUNDO)

Um amor de pai para filha.

(Telão)

RAIMUNDO (TIRANDO A ROUPA DE TERESA)

Uma paixão genética que nem o tempo conseguirá destruir, muito menos Freud e suas teorias malucas.

TERESA (ENCOSTANDO-SE AINDA MAIS A RAIMUNDO)

Uma tesão imorredoura que aumenta ainda mais os nossos laços familiares e desmistifica as estatísticas de Masters & Jonhson e do Relatório Hite.

RAIMUNDO (DEITANDO TERESA NA CAMA)

Um incesto sublime que nos faz diferentes de todos os seres humanos ainda sobreviventes e nos devolve aos braços de José e Maria.

TERESA (EM ÊXTASE)

Ah, meu pai, como te amo! Como te adoro! Como te venero!

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BLOCO II

(Telão)

(NUMA ESCOLA, LILI, MÃE DE TERESA E MULHER DE RAIMUNDO, ESTÁ LECIONANDO)

LILI

Silêncio, por favor! Vocês anotaram o dever de casa?

ALUNOS

Sim, sim, anotamos tudo professora!

JOAQUIM (SOBRINHO DE LILI, LEVANTANDO-SE)

Tia, posso fazer uma pergunta?

LILI

Que seja breve!

JOAQUIM

Qual é a cor da calcinha que a titia está usando hoje?

(RISOS)

LILI

Silêncio!!! Isto é pergunta que se faça a uma professora, Joaquim? Ainda mais sendo sua tia legítima e verdadeira? Onde é que você aprendeu isso?

JOAQUIM

Eu não aprendi em lugar nenhum não, minha tia. Eu aprendi olhando dentro dos seus olhos. Porque eu sou, realmente, apaixonado por você, e precisava chamar a sua atenção...

LILI

Mas isto é impossível.

JOAQUIM

Impossível por que, minha tia?

LILI

Porque, além de ser irmã da sua mãe e, portanto, sua tia consanguínea, eu sou casada e tenho muito mais idade que você.

JOAQUIM

Ora, minha tia, isto não importa. Para o amor não existe idade, estado civil, parentesco, tempo nem lugar. O amor é livre, o amor é lindo.

LILI

Se você insistir nessa brincadeira sem graça, serei obrigada a colocá-lo de castigo.

JOAQUIM

Pois que coloque, "dona" Lili, mas meu coração, minha alma e meu pensamento não podem ser punidos, porque eles estão protegidos contra qualquer forma de poder e pressão. A única coisa que me move, neste momento, é este imenso calor que sinto pela professora mais gostosa do mundo.

LILI (SORRINDO SEM JEITO PARA OS ALUNOS)

Vocês não reparem não, que ele é assim mesmo. Ainda bem que estamos no início do ano letivo e, com o tempo, vocês vão aprender a conviver com uma pessoa descaracterizada.

JOAQUIM (INCISIVO)

Descaracterizado coisa nenhuma. E aquele dia em que você, minha tia, me fez deitar sobre...

LILI

Cale a boca, seu bandido! Chega de bobagens! Saia da sala agora! Um momento, queridos, vou conversar com a direção do colégio (SAI)

JOAQUIM

Ih, parece que dei má nota...

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BLOCO III

(Palco)

JOÃO (FECHA O LIVRO E ATENDE AO TOQUE DA CAMPAINHA) (LILI ENTRA NERVOSA)

JOÃO

O que foi, minha mãe? Você está muito nervosa!

LILI

Cadê seu pai?

JOÃO

Está por aí... (DECLAMANDO) "Tudo que sei é o que ele me ensina. O que saberei, o que não saberei nunca, está na biblioteca em verde murmúrio de flauta-percalina eternamente"...

LILI (PROCURANDO)

Raimundo, Raimundo, onde está você?

RAIMUNDO (VESTE-SE APRESSADAMENTE. TERESA SE ESCONDE DEBAIXO DA CAMA)

O que foi, minha mulher? Mulher, o que foi?

LILI (ABRINDO A PORTA DO QUARTO)

Aconteceu de novo, Raimundo. O Joaquim cometeu a maior descompostura na sala de aula, eu levei o assunto para a diretoria e, desta vez, espero que ele seja punido.

RAIMUNDO

Mas que filho da puta aquele filho de sua irmã! Vou conversar com ela agora mesmo. Isto não pode continuar. Ele voltou a te assediar sexualmente?

LILI

Voltou. E ainda teve a coragem de dizer que eu me deitei com ele.

RAIMUNDO

E você deitou mesmo?...

LILI

Raimundo, o que é que você está insinuando? Eu sou uma mulher decente, íntegra, totalmente diferente de todas as outras. Veja lá se eu ia me meter com alguém que não você, ainda mais um parente do próprio sangue, um menino? (FAZ QUE VAI AGACHAR-SE PARA TIRAR OS SAPATOS)

RAIMUNDO (AFASTANDO-A PARA FORA DO QUARTO)

Calma, Lili, calma. Eu estava apenas brincando. Não tá vendo que não tem cabimento uma coisa dessa? Mas que esse moleque merece um corretivo, isso merece. Vou conversar com a mãe dele.

LILI

Não, Raimundo, por favor, não faça isso. Deixe que eu resolvo à minha maneira. Nós não podemos desconhecer os laços de parentesco que existem entre nós e eles.

RAIMUNDO

Da minha parte, não existe nada.

LILI

Está bem, está bem, que seja da minha então (TERESA SAI APRESSADA DO QUARTO E TROMBA COM A IRMÃ MARIA)

TERESA

Oi, magrela, tudo bem?

MARIA (SARCÁSTICA)

De novo, né Teresa? Transando com nosso pai...

TERESA

O que é isso, minha irmã? Fale baixo senão nossa mãe ouve.

MARIA

Que mãe que nada. Você nunca a respeitou. Ou você não sabe que eu acompanho, o tempo todo, o que vocês andam fazendo?

TERESA

Maria, Maria, isto é pura fantasaia. Você está ficando lelé.

MARIA

O que é que vocês estavam fazendo, então, no quarto da nossa mãe?

TERESA

Ora, ora, nada, nada.

MARIA

Pois eu vou contar o que era. Eu vi você se estrebuchando, gozando, dizendo que ama nosso pai. Eu vi tudo!

TERESA

Oh, Maria, por favor, esqueça isso.

MARIA

Tudo bem, eu esqueço, mas o que é que eu preciso fazer para ser igual a você?

TERESA

Como assim?

MARIA

Como é que eu posso ter o amor e o sexo de uma pessoa que amo aqui dentro de mim?

TERESA

Quem?

MARIA

Joaquim...

TERESA

Nosso primo? O filho da irmã de nossa mãe?

MARIA

(ESTE TRECHO COM LUZES APAGADAS. APENAS UM FOCO RESSALTA O ROSTO DE MARIA. VALSA AO FUNDO)

Exatamente, Teresa. Joaquim é a luz da minha vida, a pessoa que anda em todos os meus caminhos, o ser que foi feito para me fazer feliz o resto da vida.

TERESA

Mas ele é nosso primo...

MARIA

E daí, Teresa? Você não faz sexo com nosso pai?

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BLOCO IV

JOÃO (AO TELEFONE)

Alô!

JOAQUIM (AFLITO)

João, João, é o Joaquim. Aconteceu uma catástrofe e eu preciso de você.

JOÃO

O que foi, Joaquim?

JOAQUIM

Eu fiz uma brincadeirinha com tia Lili e ela apelou feio. Além de apelar, me dedurou à direção da escola, que está ameaçando me expulsar definitivamente.

JOÃO

Peraí, Joaquim, você está sendo cara-de-pau demais. Além de ofender minha mãe, como você mesmo está falando, ainda tem a impertinência de telefonar para mim e contar a história?

JOAQUIM

Não foi ofensa não, primo.

JOÃO

Foi o quê, então?

JOAQUIM

Eu só falei que sua mãe é a professora mais bonita do colégio.

JOÃO

Tem certeza que foi só isso?

JOAQUIM

Bem, bem, eu disse também que ela é muito gostosa...

JOÃO

"Para ganhar um ano-novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo de novo. Eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre." Entendeu, Joaquim?

JOAQUIM

Entendi, entendi, a Maria está aí?

JOÃO (Tapando o telefone com a mão)

Maria, Maria, o Joaquim está te chamando.

MARIA (CORRENDO AO TELEFONE)

Mentira, não acredito. Quincas, é você?

JOAQUIM

Lógico, meu amor, ou existe alguém mais na sua vida?

MARIA

Claro que não, Quinzinho, mas você sumiu há tanto tempo...

JOAQUIM

É a vida. É a vida. Estou muito ligado na escola.

MARIA

E a minha mãe, tem sido uma boa professora?

JOAQUIM

É justamente sobre isto que liguei para o João. Houve um atrito entre nós na aula de hoje.

MARIA

Como assim?

JOAQUIM

Não sei, sei lá, só Deus sabe, mas ela me estranhou. Chegou a me denunciar à direção só porque eu disse que suas pernas estavam maravilhosas.

MARIA

As pernas de quem?

JOAQUIM

De sua mãe, uai!

MARIA

Mas, aí, você foi longe demais. Com tantas alunas na sala, com tantas galinhas na escola, você se fixou logo nas pernas de minha mãe? Você é um tarado! A partir de agora, eu detesto você.

JOAQUIM

O que é isso, Maria? Eu falei só por falar. Eu sei que você me ama, minha prima. Eu te amo também. Aquilo foi de repente. A propósito, como é que você está vestida?

MARIA

Quincas, não me venha com essas fantasias eróticas de novo. Você já me deixou profundamente chateada com essas suas telemasturbações. Por favor, ligue para o tele-sexo. O número é 900.2526. (BATE O TELEFONE E COMEÇA A CHORAR).

JOAQUIM

Maria, Maria, não faça isso comigo. Alô, meu bem...

BLOCO V

RAIMUNDO (CHEGANDO)

O que foi meu bem?

MARIA

É nada não, meu pai.

RAIMUNDO

Como nada não, se você está chorando desse jeito?

MARIA

É que o Joaquim cismou de meter a cara comigo.

RAIMUNDO

Com você também, minha filha? Ele fez a mesma coisa com sua mãe. O jeito é ir atrás desse sujeito atrevido.

MARIA

Não, meu pai, por favor, não. Eu acho que ele faz isso apenas por brincadeira. Depois, eu gosto tanto dele...

RAIMUNDO

Ah, é? Então você prefere que um elemento desse continue desonrando nossa família?

MARIA (ABRAÇANDO RAIMUNDO)

Não é isso, meu pai, é que você sabe... (DÁ-LHE UM BEIJO NA BOCA. RAIMUNDO CORRESPONDE À ALTURA) (JOÃO ENTRA E OBSERVA A CENA)

RAIMUNDO (ASSUSTADO AO VER JOÃO)

João, João, não importa com isso não, meu filho. É apenas um gesto carinhoso com minha filha, sua irmã.

JOÃO

"Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma pedra."

RAIMUNDO

Não entendi, meu filho, o que você quer dizer? (MARIA OBSERVA, ASSUSTADA)

JOÃO

"Mundo, mundo vasto mundo, se eu chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é meu coração."

RAIMUNDO

Mas você jamais foi Raimundo. Raimundo sou eu! E eu sou a solução.

LILI (ENTRANDO)

O que é que aconteceu?

MARIA

É nada não, minha mãe. Apenas o João está declamando uns poemas.

RAIMUNDO

É, é, ele está alucinado como sempre.

LILI

Cadê Teresa?

TERESA (DE DENTRO DA CASA)

Estou aqui, minha mãe, qual é o problema?

LILI

Você não está reparando essa bagunça aqui, não?

TERESA

Por que eu é que teria de reparar?

LILI

Porque você é a filha mais velha...

TERESA (APARECENDO COM A CARA MAIS HORRÍVEL DO MUNDO)

Ah, minha mãe, vá pra puta que pariu, minha mãe.

JOÃO (APAZIGUADOR)

Calminha, Tetê, calminha. Não faz isso com nossa mãe, não. (OS DOIS SE ABRAÇAM E SOMEM)

LILI

Essa geração 64 me mata de desgosto. Raimundo, você tem sido muito íntimo com as meninas...

RAIMUNDO

E haveria de ser diferente? Afinal, elas são minhas filhas! (MARIA SAI CONSTRANGIDA)

LILI

Mas não é isso que estou falando. Eu me refiro ao assédio sexual, que virou moda nesse mundo maluco.

RAIMUNDO

Epa, aí você foi longe demais! Você, Lili, por acaso está insinuando que...

LILI

Estou!

RAIMUNDO

Ah, minha nega, deixe de ser boba. Não tá vendo que eu não ia fazer isso logo com nossas filhas?

LILI

Nega coisa nenhuma. Me largue, seu tarado, porco, canalha, cretino, moleque...

RAIMUNDO

Eu entendo sua reação, minha mulher, mas não é por aí. Você quer, apenas, justificar o caso que mantém com nosso sobrinho Joaquim...

LILI

O quê? Joaquim? Aquele pirralho? Ora, Raimundo, deixe de ser tolo.

RAIMUNDO

Pois eu vou botar tudo em pratos limpos. E vai ser agora! Espere só pra você ver. (SAI)

LILI

Não, Raimundo, pelo amor de Deus, não.

(RAIMUNDO VAI À GARAGEM E SE MANDA COM O CARRO) (LILI TENTA CONTÊ-LO, EM VÃO)

(Telão)

(CENA DE ACIDENTE DE CARRO, COM RAIMUNDO AO VOLANTE)

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BLOCO VI

(Telão)

JOÃO (NU, ENQUANTO TERESA FAZ STRIP-TEASE)

"Como é o corpo? Como é o corpo da mulher? Onde começa: aqui ou na cabeleira, e vem descendo? Como é a perna subindo e vai subindo até onde? Vê-la num corisco é uma dor no peito, a terra treme. Diz-que na mulher tem partes lindas e nunca se revelam. Maciezas redondas. Como fazem nuas, na bacia, se lavando, para não se verem nuas nuas nuas? Por que dentro do vestido muitos outros vestidos e brancuras e engomados, até onde? Quando é que já sem roupa é ela mesma, só mulher? E como que faz, quando que faz o que fazemos todos porcamente?"

(OS DOIS SE DEITAM)

BLOCO VII

(Palco)

LILI (ATENDENDO O TELEFONE)

Alô, alô! Como é? Sim, sim, é sim. Raimundo Castro de Souza. Como? O quê? Quando? Onde? (COMEÇA A CHORAR) (ENTRAM, ATRAÍDOS PELOS SEUS GRITOS, JOÃO, MARIA E TERESA).

JOÃO

O que foi, minha mãe?

LILI (LARGANDO O TELEFONE)

Seu pai morreu.

MARIA

Como, minha mãe?

LILI

De desastre. A polícia acaba de ligar. Bateu o carro num trem-de-ferro.

TERESA

O quê? Quando foi isso, minha mãe?

LILI

Agora, o corpo ainda está quente.

JOÃO

Onde, minha mãe?

LILI

Não sei, meu filho, só sei que estava indo atrás do Joaquim. Aquela confusão do colégio, sei lá. Eu bem que pedi pra ele não ir. Bem feito!

MARIA

Como bem feito, minha mãe? Você não o amava?

LILI

Eu não amava seu pai, eu não amava vocês, eu não amava ninguém. Eu já não existo, eu já não sou nada no mundo. Eu não tenho origem nem raízes (DESCONTROLA-SE EM CHORO PROFUNDO)

JOÃO (DECLAMANDO)

"Tenho que assimilar a singularidade do trem-de-ferro. Sua bufante locomotiva, seus estertores, seus rangidos, a angustiante ou festiva mensagem do seu apito. Minha terra era livre, e meu quarto infinito."

TERESA

João, você é louco de fazer poesia até com a morte de nosso pai?

JOÃO (DECLAMANDO)

"Não exijam prefácios nem posfácios do ancião que mais fala quando cala."

LILI

Vamos providenciar o velório do velho.

JOÃO (DECLAMANDO)

"Com a chave na mão/quer abrir a porta,/não existe porta;/quer morrer no mar,/mas o mar secou;/quer ir para Minas,/Minas não há mais./José, e agora?"

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BLOCO VIII

JOAQUIM (CHEGANDO AO VELÓRIO, NUMA IGREJA)

Tia, tia, o que foi que aconteceu?

LILI

E você ainda tem coragem de perguntar?

JOAQUIM

O que foi, minha tia? Diga, o que foi?

LILI

Você deve dar graças a Deus por estar vivo. Se não tivesse batido o carro num trem-de-ferro, Raimundo teria estourado os seus miolos.

MARIA

Não assuste o priminho, não, minha mãe. Deixa que eu explico: o meu pai foi acidentado...

TERESA

Deixa disso, Maria, minha mãe tem razão. Esse crápula é que foi responsável pela morte do nosso pai.

MARIA

E o que é que Joaquim tem com isso?

TERESA

Tem que ele meteu a cara com nossa mãe.

MARIA

E daí? Ela mesmo disse que não amava papai.

LILI

Disse e repito: eu não amava, não amo, nem amarei ninguém.

TERESA

Vamos falar um pouco mais baixo...

JOAQUIM

Falar baixo coisa nenhuma. Eu falo da altura que quiser. E tem mais uma coisa: eu amo minha tia Lili. E, agora, que uma pedra acaba de sair do caminho, que era a pedra do meu tio, eu quero saber se ela me ama também.

LILI

Ô menino, deixe de ser bobo. Eu não amo ninguém.

JOAQUIM (CORRENDO PARA O ALTAR)

Por sua causa, minha tia, vou cometer o gesto extremo da morte, a não ser que você diga que me ama e que vai se casar comigo.

JOÃO (CENA PARALISADA) (DECLAMANDO)

"Inútil você resistir ou mesmo suicidar-se. Não se mate, oh não se mate, reserve-se todo para as bodas que ninguém sabe quando virão, se é que virão."

JOAQUIM

Agora que meu tio torto está morto, responda minha tia Lili: você me ama ou não?

LILI

Nào!

(JOAQUIM AVANÇA SOB O OLHAR ATÔNITO DOS PRESENTES AO VELÓRIO, ATIRA CONTRA A PRÓPRIA CABEÇA E CAI SOBRE O CAIXÃO, QUE TAMBÉM CAI)

(LILI E MARIA PEGAM O CORPO DE JOAQUIM E O CARREGAM PARA FORA. TERESA SE ABRAÇA A JOÃO E OS DOIS CHORAM AO LADO DO CAIXÃO DE RAIMUNDO)

(TODOS CANTAM UMA LADAINHA - "Avé, avé, avé Maria...", DE FORMA JOCOSA. ENQUANTO ISSO, DIVIDEM O CONTEÚDO DE UMA GARRAFA DE CACHAÇA, AO REDOR DO DEFUNTO)

JOÃO

"Pouco importa que venha a velhice. Que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança."

BLOCO IX

JOÃO

Agora que nosso pai morreu, precisamos tomar uma decisão sobre nossa vida. Ou nos casamos de vez ou nos separamos para sempre.

TERESA

Isto é impossível, meu irmão. A igreja jamais permitiria esse tipo de união. Nós podemos ser unidos, sim, mas, casados, jamais.

JOÃO

O que quero dizer, Teresa, é que sempre te amei e nosso pai sempre nos separou.

TERESA

Pare com isso, João. Respeite pelo menos o corpo do nosso pai.

JOÃO (DECLAMANDO)

"Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!"

TERESA

Ih, lá vem você com essas confidências itabiranas...

JOÃO

E então, Teresa, vamos nos juntar para sempre?

(LILI E MARIA RETORNAM, AINDA CHOROSAS)

MARIA

Posso saber o que estão conversando?

TERESA

Maria, cuide de sua vida e deixe a nossa em paz.

MARIA

Hum, pelo tamanho do coice, a mula é brava...

LILI

Vocês não vão querer brigar logo aqui no velório do seu pai, não é?

JOÃO (DECLAMANDO)

"Pátria, morrer por ti ou pelo menos ofertar este ramo de palavras ardentes."

(TODOS REZAM O PAI-NOSSO E A AVE-MARIA)

(Telão)

(CENAS DOS ENTERROS DE RAIMUNDO E JOAQUIM)

BLOCO X

(Palco)

(DE NOVO EM CASA)

JOÃO

Teresa, a dor da morte do nosso pai é imensa, mas meu amor por você é ainda maior. Eu quero superar tudo o que ele significou na sua vida.

TERESA

Por favor, João, não me machuque tanto assim. Eu quero apenas curtir a lembrança do nosso pai. E o melhor local para isso é um convento. Ainda hoje vou cuidar disso.

JOÃO

Como, um convento? Você vai virar irmã de caridade?

TERESA

O retiro espiritual é a forma que eu sonho para me livrar de todas as dores, de todos os pecados.

JOÃO (DECLAMANDO)

"Amor, fonte de eterno frio, minha pena deserta, ao fim de março; amar, quem contaria? E já não sei se é jogo, ou se poesia."

TERESA

Não adianta, João. Vou ser carmelita. Vou encontrar, finalmente, a felicidade.

JOÃO

"Engano seu. Quer um conselho? Vai apanhar tiziu, que está voando lá fora..."

LILI (ENTRANDO)

Que história é essa?

JOÃO

É a Teresa, que cismou de ser freira, irmã de caridade.

LILI

Por que, minha filha?

TERESA

Ah, minha mãe, eu cansei de viver nesta casa, cansei de ouvir tantas palavras repetidas, cansei do feijão-com-arroz, cansei dos mesmos passarinhos, cansei de tudo. E, além do mais, eu quero contribuir para a edificação do Senhor entre os homens.

LILI

Pois que vá, minha filha, e que seja feliz. Quando sentir vontade de voltar, estaremos recebendo-a de braços abertos.

(MARIA CHEGA COM AR DE QUEM NÃO ESTÁ ENTENDENDO NADA)

TERESA

É nada não, Maria. Estou apenas falando sobre aquele meu sonho antigo de ir para o convento.

MARIA

Hum, hum!

TERESA

E, agora, com a falta do nosso pai, acho que é a hora ideal para me entregar ao outro pai, o pai celestial.

MARIA

Eu só não vou com você, Tetê, para não deixar a nossa mãe sozinha.

TERESA

Como sozinha? E o João?

MARIA

Ah, você não sabe? Esse pilantra está de passagem comprada para os Estados Unidos. Seu passaporte acaba de chegar de Governador Valadares.

TERESA

Verdade, João?

JOÃO

É, bem, talvez, sobretudo, mas, quer dizer, isto é...

TERESA

Não enrole não. Então é assim que você jurava amor eterno?

JOÃO

É o seguinte, Teresa: um grupo de amigos de Valadares me convidou para passar uns anos lá em Miami e eu aceitei. Foram eles que compraram a passagem para mim.

TERESA

Cafajeste! Me fazendo de trouxa, me enganando, me propondo até casamento...

LILI

Como??? Que história é essa???

TERESA

Isto mesmo, minha mãe! Este sujeito queria casar comigo, mesmo sabendo que o incesto é proibido por lei e pode dar até cadeia.

LILI

João, é verdade?

JOÃO

"Abença, mamãe".

LILI

"Deus te abençoe, obedece seu pai. Hora de dormição não é de caçoada. Hora de dormir todo menino dorme"

JOÃO

"Mesmo sem sono?"

LILI

"Dorme sem pensar"

JOÃO

"Mas estou pensando. Penso mulher nua. Penso na morte. Se eu morrer agora? Sem ver mulher nua, só imaginando? Morro, vou pro inferno. Talvez não. Meu anjo me puxa de lá, leva ao purgatório."

(Telão)

(CENAS NO AEROPORTO E NO CONVENTO, COM JOÃO E TERESA SE DESPEDINDO DE LILI E MARIA)

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BLOCO XI

(Palco)

LILI

E agora, Maria? Como será nossa vida sem Raimundo, sem João, sem Teresa, sem Joaquim?

MARIA

Sabe, minha mãe, acho que pra mim não resta mais nada a não ser tomar um copo de veneno, de formicida Tatu.

LILI

Não seja tão trágica, minha filha. Ainda há muita vida à nossa frente. Cuidemos para que o tédio e o ócio não tomem conta desta casa. Ou, pelo menos, para que as samambaias não morram de desgosto.

MARIA

Pois que sim, minha mãe. Penso, até, em escrever todo dia para João e Teresa. Mas, como dizia Drummond na versão do João: "... E nem tenho coragem de escrever. Esta carta é só pensada."

BLOCO XII

(MUITO TEMPO DEPOIS)

MARIA

Aonde é que você vai, minha mãe?

LILI

Vou ao salão, por quê?

MARIA

Eu não sei se estou certa não, minha mãe, mas fica muito esquisito para uma viúva da sua idade ficar o tempo todo na rua, inda mais chegando tarde da noite.

LILI

O que é isso, Maria? Faz quase um ano que seu pai morreu. Não há nada demais em eu me encontrar com minhas amigas, fazer compras, ir ao cabeleireiro, enfim, viver minha própria vida.

MARIA

Não é isso o que os vizinhos acham não. Eles estão comentando por aí...

LILI

Pros diabos com esses comentários, Maria. Errado é você ficar o tempo todo entocada, uma solteirona desmazelada que não é capaz sequer de se arrumar para assistir à missa da Catedral...

(MARIA COMEÇA A CHORAR. LILI SAI)

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BLOCO XIII

J. PINTO FERNANDES (CHEGANDO PULANDO E CANTANDO UMA CASTANHOLA OU RITMO DE FADO, APENAS DE ROUPÃO. DEPOIS DETA-SE NA CAMA COM LILI)

Você é a mulher mais esplendorosa que já conheci. A mais bela, a mais carinhosa, a mais inteligente, a mais fogosa.

LILI

Eu estou apaixonada também, Jota Pinto Fernandes, mas esta situação, infelizmente, não pode continuar. Eu já não consigo enganar mais minha filha Maria. E ela está cada vez mais desconfiada...

J. P. FERNANDES

Por que haverá de continuar enganando sua filha, Lili? Nós podemos muito bem deixar tudo às claras?

LILI

Não entendi nada.

J. P. FERNANDES

Preste atenção. Há muito tempo eu venho pensando em me casar com você. Só não propus isto antes porque estava mal financeiramente e, afinal, o Raimundo ainda era vivo. Agora que as coisas melhoraram e ele já é finado, podemos nos unir definitivamente.

LILI (EMBEVECIDA)

Oh, meu amor, eu queria tanto ouvir o que você acaba de falar. Há quantos anos eu queria saber do seu amor por mim! Claro, claro, vamos nos casar, nossa relação será perfeita. Pelo menos melhor do que a que provocou tantos traumas familiares como aquela com o Raimundo incestuoso.

J. P. FERNANDES

Nós vamos mudar daqui Beija Flor para o Bairro Paraíso, montar uma nova vida, começar tudo de novo, purificar o sangue da nossa família.

LILI

Ah, que felicidade! Como diria o Juca Chaves: "Que bom, que bom!" Mas, e a Maria, como é que fica minha filha?

J. P. FERNANDES

Ah, a Maria... fica pra titia.

(MARIA, QUE ACOMPANHA A CENA DE LONGE, COMENDO FAROFA, ATIRAR O PRATO AO CHÃO, ESPATIFANDO- É O FIM)

(Telão)

(REPETE-SE A ABERTURA, COM FALA EM OFF E IMAGENS DOS PERSONAGENS, AGORA TAMBÉM COM J. PINTO FERNANDES, QUE NÃO TINHA ENTRADO NA HISTÓRIA...)

Obs.: As citações entre aspas são de Carlos Drummond de Andrade


O DIA EM QUE MEU CORPO MORREU
Uma minipeça de Reginauro Silva

SITUAÇÃO/ENREDO: um grupo de sete pessoas discute o que é a morte. Em meio à conversa, aproxima-se um homem procurando por uma certa Esperança. Ninguém sabe informar, mas todos se dispõem a ajudar ao forasteiro, principalmente depois que ficam sabendo os atributos de Esperança, entidade capaz de aliviar todas as dores, resolver os mais intrincados problemas e, em caso extremo, até cancelar a vinda da morte. Empreende-se, então, uma busca desesperada, embora cheia de esperança... Que, finalmente, é encontrada. E agora?
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PERSONAGENS:
O Forasteiro
Ró Galinha, o apressadinho
Bicheira, a gostosa
Lobão, o espírita
Rita Perua, a filósofa
Seco, o fanfarrão
Maria Doida, a racional
Cupim, o presepeiro
A Morte
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CENÁRIO: uma oficina, no primeiro set; rua de uma cidade qualquer, no segundo set; margens de um rio, no terceiro.
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NO PRIMEIRO SET
RITA PERUA - Como ia dizendo, o homem é tão hipócrita que tem a cara-de-pau de desejar a seu semelhante que morra dormindo, para morrer feliz.
MARIA DOIDA - Mas tudo tem que ser tratado com racionalidade. Você, com esse nome - Rita Perua, na realidade não tem nada que possa envolver a sua honra.
RÓ GALINHA - Eu, Ró Galinha, protesto contra a discriminação que se fazem às aves de pena, que morrem todo dia apenas para encher a barriga do povo. Estou com Rita Perua e não abro. O que é mesmo que você disse?
RITA - Eu estava dizendo pra essa Maria Doida aí que a morte não tem hora certa de chegar...
SECO - ... não escolhe entre pobre ou rico, preto ou branco, bicha ou machão...
BICHEIRA - ... irmã de caridade ou rapariga. Pode ser o homem mais poderoso do mundo, na hora que ela chega, é fatal. Morre mesmo, não tem nem meu pé me dói.
CUPIM - Isso todo mundo já sabe, Bicheira. O que nós pretendemos é arranjar uma forma de adiar o julgamento final. Neste caso, eu sugiro que nós joguemos uma bomba no cemitério. É isso: acabando com o cemitério, a morte não terá lugar para mandar suas vítimas. E, até que construa outro campo excomungado, nós teremos ganhado muitos anos de vida.
SECO - Eu entro com todas as despesas para a confecção das bombas. Se vocês quiserem buscar tecnologia no exterior, podem contar com meu supersônico particular que, aliás, está precisando dar umas voadas, mesmo, para desenferrujar as turbinas.
LOBÃO - Não é nada disso, Cupim. Você está enganado, Seco. O que a Bicheira quer dizer é que de nada adianta ter um rosto lindo, um corpo maravilhoso e uma bunda gostosa como a dela. Na hora do pega pra capar, não escapa ninguém. Nem o presidente da República.
MARIA - Por mim, esse daí já tinha ido há muito tempo.
LOBÃO - Também não precisa apelar, né Maria Doida! Lá no centro espírita tem uma perdida como você que já morreu 28 vezes e até hoje não foi prestar contas a Deus. Seu maior sofrimento é padecer na cama sem que ninguém mais acredite nas suas mortes. Para ela, já não existe choro nem vela, muito menos velório.
RITA - Vocês desvirtuaram completamente o que estava dizendo, ou melhor, o que eu estava propondo. O que era mesmo?
TODOS - Sei lá.
RÓ - Quem é que tem um real aí? Preciso comprar um caldo Knor pra colocar na sopa de sururu. Já tem tomate, repolho, fubá, macarrão, cebola, dois ovos de codorna e pasta de dente. Só falta o Knor.
SECO - Eco! Você deveria ter colocado pelo menos um pedaço de carne. Por que não me avisou antes?
MARIA - Isso é hora de falar em comida? Ô Ró, deixa essa sopa de sururu pra lá. Vamos falar de gente que não morre nunca. Você já viu enterro de puta, padre e anão, já, Seco?
SECO - Nunca.
MARIA - E o papa, então? Duvido muito que a morte vai pegar o papa. Papa não morre...
LOBÃO - Ih, lá vem Maria Doida de novo! Ela implicou, agora, com as maiores personalidades do mundo. Daqui a pouco vai querer matar o Pelé também...
CUPIM - Ou a Xuxa...
LOBÃO - Antes eles do que eu. Mas, em vez de ficar aqui filosofando, não seria melhor nós nos concentrarmos e procurar, via espiritual, detonar esse câncer da humanidade chamado morte?
BICHEIRA - E como é que vamos conseguir isso se ninguém aqui acredita em Deus?
RITA - Acho melhor a gente dar uma volta pra desanuviar a cabeça.
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NO SEGUNDO SET
FORASTEIRO - Boa noite. Por acaso, vocês sabem onde fica a Esperança?
SECO - Nova Esperança! Sei sim, já sobrevoei várias vezes aquelas redondezas. Fica perto de Montes Claros.
FORASTEIRO - Não é ao ex-distrito de Nova Esperança, atual cidade dos Veados, que me refiro. Estou falando de Esperança, uma entidade que alivia todas as dores, que resolve todos os problemas e nos livra de todos os males...
LOBÃO - É exatamente sobre ela que estávamos falando. Parece, até, que o senhor veio de outro plano. Deixa ver se, realmente, o senhor é de verdade.
FORASTEIRO - Pare de me beliscar. Eu explico. É o seguinte: eu me chamo Forasteiro, sou de carne e osso, e há 118 anos...
TODOS - Cento e dezoito anos?!?
FORASTEIRO - É, há 118 anos vivo procurando a Esperança da minha vida. Me disseram que um grupo de malucos, ou melhor, um grupo de jovens aqui da paróquia poderia me ajudar. Como vocês estão reunidos em grupo, pensei que aqui estaria o canal da minha Esperança.
RITA - Mas como o senhor consegue viver tantos anos, sem morrer?
FORASTEIRO - Muito fácil. Eu decidi andar atrás da Esperança enquanto houver um fio de vida. E, como vocês sabem, a Esperança é a última que morre, estarei vivo enquanto ela existir.
RÓ - Oba! É nessa que eu vou. Já pensou? Vivo para sempre, com a única missão de seguir os passos da Esperança. Oba! Vamos todos embarcar nessa canoa.
SECO - Quanto é que custa, Forasteiro? Vai logo dizendo, que dinheiro não é problema. Quer receber em dólar, real ou libra esterlina?
BICHEIRA - Posso levar os meus bichos também?
CUPIM - Mole pra nós. Com bicho ou sem bicho, vamos ter a eternidade toda para procurar essa tal de Esperança.
RITA - Tomara que nunca a encontremos. Poderemos ir agora mesmo?
MARIA - É, o negócio está barato demais. O cara chega assim, sem mais nem menos e dá a receita da longevidade exatamente para um grupo de hipocondríacos que morre de medo da morte...
LOBÃO - Também não precisa filosofar esse tanto não, né Maria Doida? Ou você esqueceu que a Rita Perua é que é a filósofa de nós todos?
RITA - E que Lobão é o nosso espiritualista, o nosso guru? Você é apenas Maria, a Racional.
MARIA - Certo, mas com todo o meu racianalismo, eu tenho o direito de duvidar, e muito. Vocês não acham que esse Forasteiro está com cara de vigarista, de um sujeito que vem lá das profundas só pra passar o mel na boca da gente...
TODOS - Eh...
FORASTEIRO - Bem, já que vocês duvidam, vou me retirando. Preciso encontrar minha Esperança. Não consigo viver além dos meus 118 anos.
SECO - E se a gente correr mundo, briquitar, briquitar e acabar encontrando a Esperança, como espero que aconteça. Nesse caso, morreremos todos de uma vez?
FORASTEIRO - Rá... rá... rá... Claro que não, companheiro. Porque cada um tem sua Esperança indivisível, indestrutível, intransferível, tal qual a carteirinha de estudante. Minha Esperança é minha e acabou. A não ser que vocês queiram que, antes de encontrar a minha, eu procure a Esperança de cada um de vocês. Aí, seremos todos sacrificados.
CUPIM - Vai morrer pra lá, peão!
BICHEIRA - Que faremos, então?
LOBÃO - Vamos voar sobre as asas de meu aeroplano e ajudar o distinto aí a encontrar a Esperança, apenas por curiosidade. Se realmente for verdade o que ele diz...
SECO - ... nós vamos enrolar a morte até quando bem entendermos.
LOBÃO - Bidu! É isso mesmo. Vamos todos rodar o mundo com o Forasteiro e vermos até que ponto tem cabimento essa sua teoria maluca.
MARIA - Se bem que uma teoria de 118 anos merece todo nosso respeito. Cadê o avião?
LOBÃO - Fechem os olhos e meditem comigo.
TODOS - Avião, avião, avião!!! Proteção, proteção, protecão!!! Giramundo, giramundo, giramundo!!! Lucifer, Lucifer, Lucifer!!! Tentação, tentação, tentação!!! Vrrruuuuuuuuuuuummmmmmmmmmm....
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NO TERCEIRO SET
FORASTEIRO - Como vimos parar aqui?
LOBÃO - Agora não é hora de fazer perguntas. Você não queria encontrar a sua Esperança? Pois é para as margens do Rio Vieira que o Grande Guia nos enviou. Ela deve estar em alguma dessas locas aí.
MARIA - Dentro do rio não está, porque aí seria Iemanjá. No céu, também não, porque seria São Jorge.
RÓ - Que diabo é isso? Por acaso, você está fazendo alguma prova de múltipla escolha, na base da eliminação?
RITA - Deixe de ser apressado, Ró Apressadinho! A Maria Doida está apenas racionalizando uma forma de encontrar a Esperança do Forasteiro.
BICHEIRA - Seria melhor, então, que ela usasse a Física Quantum e, numa máquina do tempo, ou do Lobão, empreendesse uma volta ao passado...
CUPIM - Nesse caso, ela não iria encontrar a Esperança, mas Adão e Eva.
SECO - E, aí, ela poderia matar Adão e Eva e acabar com a humanidade...
LOBÃO - Ou, então, matar a serpente e acabar com a Aids pro resto da vida.
MARIA - Tudo bem, qualquer das hipóteses é ótima, mas e se, nessa regressão, ela topasse com Hitler? Ou com Jesus Cristo?
BICHEIRA - Era só fingir que não estava vendo nada...
SECO - E você acha que a Maria Doida, aparecidinha como é, ia perder a oportunidade de aparecer em toda a imprensa do mundo, vendo Hitler e Jesus e não pedindo nem um autógrafo deles para a posteridade...
FORASTEIRO - Eu acho que vocês estão simplesmente viajando na maionese. Cadê minha Esperança que vocês disseram que estava por aqui?
LOBÃO - Vamos no concentrar de novo. Abaixem a cabeça e me dêem as mãos.
TODOS - Fé cega, faca amolada!!! Fé cega, faca amolada!!! Fé cega, faca amolada!!! Esperança, esperança, esperança!!! Apareça, apareça, apareça!!!
MORTE - Em que posso ser útil?
FORASTEIRO - Meu Deus! Não posso acreditar! Depois de longos 118 anos, finalmente ela está aqui. Finalmente...
MORTE - O que é que ele está dizendo?
RÓ - É o seguinte, dona Esperança. Esse sujeito aí está sofrendo muito porque já passou da hora de morrer, cento e tantos anos. E ele só morrerá depois que a senhora morrer também.
BICHEIRA - Outra vez com sua pressa, né Ró Apressadinho? Deixa que eu converso com ela. A senhora é, de fato, a Esperança do Forasteiro?
MORTE - Oh não! Há um engano aí, porque eu sou a morte...
TODOS - A morte???
MORTE - Sim, sim, muito prazer. Com muito gosto, a partir de agora vocês passam a habitar o rico e fanstástico mundo da morte, o meu mundo. Sem dor, sem crime, sem castigo, sem cobrança, sem violência. Um mundo onde tudo é permitido e nada é proibido.
RITA - Pô, será que vimos parar em Porto Seguro?
LOBÃO - Mas nós estávamos atrás da Esperança!!!
MORTE - E por que não? Enquanto morte, eu sou a esperança. Esperança de todos os passageiros desse mundo sem pé nem cabeça. Mundo perverso, que usa a vida como calvário de meus filhos, que submete todos vocês a uma brutal disputa material que nada constrói, nada resulta no aprimoramento da raça. Por que chora, meu filho?
CUPIM - Ó dona Morte, me perdôe. Eu aprontei demais, fiz muita bagunça, traí minha mulher, pus veneno na comida do meu pai, mijei na roupa de formatura de minha irmã. Mas foi só isso, dona Morte. De presepeiro, mesmo, eu só tenho a fama. Acho muito injusto a senhora me condenar assim, sumariamente.
MORTE - E quem disse que você será condenado? Estou apenas oferecendo a vocês a descoberta de uma nova luz, a luz do amor e da bem-aventurança, a luz fria e amiga do sossego, eterno sossego.
CUPIM - Pois eu não quero isso não, dona Morte. Prefiro continuar torcendo pelo Atlético Mineiro, tomando sopa de sururu e votando no PT. Prefiro viver sofrendo.
MORTE - Mire-se no exemplo da Bicheira, a gostosa. Veja como está disposta a adentrar o reino dos céus.
BICHEIRA - Logo eu, que pratiquei a contravenção a vida inteira? Nada disso, dona Morte, leve a Rita Perua primeiro. Se soubesse que pegar jogo de bicho fosse tão perigoso assim tinha continuado vendendo sutiãs e calcinhas pras sacoleiras do Paraguai.
RITA - Muito engraçado, né gostosona? Tira o seu da reta e coloca o meu, né! Mas é bom que isso aconteça, para que você pense um pouco na filosofia daquele poeta alemão que dizia: "Uma vida inútil é uma morte prematura". Quem mandou você partir pro crime logo cedo? Eu, por mim, já me sinto preparada para o que der e vier. Não sei por que vocês se debatem tanto com uma criaturinha tão meiga e sensível como essa geringonça que nos contempla.
MORTE - Muito obrigada! Esteja sempre às ordens!
SECO - Cruz credo pé de pato mangalô três vezes! Eu tenho três mansões nos Jardins, oitenta carros importados, uma frota de navios mercantes, seis jatos e nove bimotores, uma fazenda em cada município brasileiro, duzentos cinemas e três refinarias de petróleo. Posso dar isso e muito mais para que a senhora me poupe desta viagem.
MORTE - Nada disso tem valor para mim. Para mim nem para ninguém. Daqui a pouco você vai entender que de nada adianta o acúmulo de tantas riquezas materiais. Você conhece a história do camelo e da agulha, dom Luciano?
SECO - Luciano, não. Eu me chamo Seco, o fanfarrão.
MORTE - Pois é, fanfarrão. Agora vale a hora da verdade e da justiça. Por favor, não chore.
LOBÃO - Mas a senhora sabe que eu sou espiritualista e, no entanto...
MORTE - No entanto, a estrada é única para todos, crentes ou não, católicos ou evangélicos, ateus ou macumbeiros. A estrada do juízo final tem apenas uma mão, meu amigo Lobão.
RÓ - O que é que adiantou em correr tanto na vida?
MORTE - Correu por que quis, meu filho. Cada um tem sua sina, cada um carrega seu próprio destino. Você correu, correu e morreu na praia. Quer dizer, na minha doce e aprazível praia.
MARIA - No fundo, no fundo, quem estava certa era eu. E vocês me chamando de louca, maluca, Maria Doida. Viram só? Está todo mundo com o cuzinho na mão, e eu aqui, chupando meu picolé, todinha molhadinha, na minha, nem me lixando pra essa coisa horrorosa que mais parece um cheque sem fundos. Eu, por mim, pode me levar agora mesmo. Anda, leva!
MORTE - Calma, Maria Doida, até nessa hora é preciso ter paciência. Agora, vocês vão me acompanhar em paz, tranqüilos e serenos, sob minha total e irrestrita vigilância. Como disse Tancredo Neves, vocês têm a eternidade toda para descansar.
SECO - Quer dizer que embarcamos direitinho numa canoa furada. Quem é esse cara que dizia ser o Forasteiro à procura da Esperança?
MORTE - Ele é apenas a porta. A porta da Esperança.
BICHEIRA - Só podia ser coisa de picareta.
MARIA - Eu sabia que Sílvio Santos estava envolvido nisso. Só não falei antes com medo de dar má nota.
MORTE - E então, vamos entrando?
TODOS - Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco/Bendita sois vós entre as mulheres/Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus...



VIADAGEM

Uma peça de Reginauro Silva

Personagens

HOMEM

MULHER

Homem - Alvenaria, cheia de massa, o cimento é composto. Bendita sois vós entre as colheres e bendito é o fruto que a betoneira produz. Santa Maria, mãe de Deus, mandai pra nós os tratores. Agora e na hora da massa forte. Também!

Mulher - Rapaz, isso que você está fazendo é um pecado, uma heresia... Onde é que já se viu rezar a Ave Maria desse jeito?

Homem - Não é Ave Maria não, Madalena. É Alvenaria, entendeu? Alvenaria...

Mulher - Alvenaria assim como? Alvenaria não é construção civil?

Homem - Pois então. É uma homenagem aos verdadeiros construtores do Brasil, os pedreiros, os serventes de pedreiro, os pintores, os carpinteiros, os mestres de obra, os marceneiros...

Mulher - Naturalmente, é mais uma de suas ideias malucas, né Adalberto? Desde quando você cismou de participar do Psiu poético, é essa frescuragem todo dia. Não sei mais onde você vai achar assunto pra fazer poesia...

Homem – Que Psiu poético que nada, Madalena! E eu lá tenho capacidade para inventar uma reza como essa? Alvenaria, cheia de massa... foi feita no Bar Brasil, tradicional reduto da noite belo-horizontina, ancoradouro seguro de Beto Guedes e sua galera.

Mulher – Foi Beto quem compôs?

Homem – Que Beto que nada! A letra é de Elias Moreira Chaves, o famoso Cacharrel, editor do Terra de Minas; de Tadeu Franco, meu compositor preferido; do saudoso Veveco (Álvaro Mariano Teixeira), que está fazendo artes no outro plano; e do imortal juiz mineiro Augustão Bala Doce. Foi feita nos áureos tempos da Segunda sem lei. Por acaso, eu estava presente e tomei para mim a missão de difundir este verdadeiro hino do operariado brasileiro.

Mulher – Ah, entendi. Vocês querem dizer que quanto mais pobre o cidadão, mais ele confia em Deus.

Homem – É. Quem batalha de sol a sol, defende ali o pão de cada dia, quem luta, reza duro. Quantas horas?

Mulher – Nove e meia.

Homem – Puta que pariu. Está na hora do jogo do Galo.

Mulher – Nada de jogo de futebol agora! Tenho um assunto muito sério para tratar com você. De quem é aquela revista Playboy que achei no guarda-roupa?

Homem – Lá vem você de novo com esses ciuminhos literários... Não já lhe disse que compro a Playboy apenas para ler as entrevistas?

Mulher – Ah, é, quem é o entrevistado do mês?

Homem – Delfim Neto.

Mulher – Tá vendo aí?! Te peguei na mentira de novo. É sempre assim. Toda vez que acho uma revista de mulher pelada em casa você diz que é apenas para se informar, para ler as entrevistas, para não sei o quê... Mentiroso! O entrevistado deste mês é Guido Mantega...

Homem – Mas ele não é o Ministro da Fazenda? Delfim Neto também era...

Mulher – Era 50 anos atrás... na época da ditadura. Tá na cara que você compra essas revistas Playboy pra ver aquele bando e raparigas que não têm nenhuma vergonha, que escancaram a buceta pra tudo quanto é câmara de J. R. Duran e outros lambe-lambes da praça...

Homem – Peraí, Madalena, você não acha que é muita viadagem assumir essa postura de pseudo-moralista, de defensora da moral e dos bons costumes, de uma mulher santa e caridosa apenas para seguir o que...

Mulher – O que o quê?! Você está indo longe demais. Não põe igreja nessa sem-vergonhice não.

Homem – Ta vendo?! Pura viadagem. Eu nem falei o nome de ninguém e você já vem defender aquele pastor...

Mulher – Aquele pastor o quê?

Homem – Aquele pastor, uai!

Mulher – Você está, por acaso insinuando que o pastor é veado?

Homem – Claro que não, Madalena! Eu sei que o pastor é muito homem. O que eu quis dizer é que a sociedade como um todo, as pessoas que se dizem intelectuais desta cidade, os bacanas que andam tirando onda por aí...

Mulher – Os jornalistas também?

Homem – Claro, os jornalistas, os advogados, os médicos, os dentistas, os fiscais da Receita, os professores...

Mulher – Menos os do Indyu...

Homem – Tá bom, toda essa gente, e mais os fazendeiros e os herdeiros...

Mulher – Não são a mesma coisa?

Homem – O que eu quero dizer é que é uma puta viadagem esses ricos de merda, esses intelectuais de meia tigela ficarem por aí arrotando que uma mulher linda e maravilhosa como você não pode tirar a roupa e mostrar a precheca...

Mulher – Aqui, não, gavião! Tá pensando o quê? Aliás, você não está pensando nada. Porque você sabe muito bem, desde o dia em que me casei com você, Maria Loura...

Homem – Maria Loura não, Adalberto.

Mulher – Adalberto porra nenhuma! Todo mundo te conhece por Maria Loura...

Homem – Só no Santo Expedito... Tá bom, tá bom, eu sei que você não iria escancarar suas coisas assim... nem por 500 mil reais?

Mulher – É, bom... R$ 500 mil? Aí a gente pensa, né! Quanta hipocrisia, né Adalberto? Toda vez que me lembro de Tom Jobim, eu concordo com ele. Tom dizia que é proibido fazer sucesso no Brasil. Como há hipócritas invejosos, meu Deus!

Homem – Pura viadagem!

Mulher – Tem alguém chamando na porta. (sai)

Homem – (BEBENDO) - Agora, esses moralistas de uma figa cismaram com as sapatas. Se bem que o negócio está feio. A onda aqui é sapatagem. Você conhece uma mulher linda e pergunta se ela tem namorado. Aí, ela responde: - Namorado, não. Eu tenho namorada... O negócio está se alastrando cada dia mais. Que desperdício! E como são ciumentas! Outro dia eu fui conhecer uma boate frequentada só por elas, as sapatas, e uns curiosos como eu. Já na chegada o porteiro me pediu a identidade. Ele não sabia que eu não uso cueca. Virei pra ele, abaixei a calça e disse – Aqui está minha identidade! E ele – Pois não, doutor, pode entrar! Rárárárárá! Que molecagem santa... A galera que estava pescoçando adorou... Pedir identidade a um homem como eu para entrar num lugar daquele!? É, porque homem assim como eu está fazendo falta na praça. E a mulherada adora. Não essas sapatas lá da boate, mas mulher de verdade, assim como Heloísa Helena, Hebe Camargo, Ana Maria Braga... Mulher que gosta de pinto mole, então, eu estou levando à loucura! Aprendi isso com Tone Abreu... Elas dizem que é melhor, mais light, mais carinhoso. Deixa o bicho endurecer lá dentro. Esse pessoal aí não trepa muito, não. Você aí da esquerda, já trepou com o pinto mole? E você aí da direita, isso, você aí, meio careca, já deixou o pau endurecer lá dentro? Ah, bom, bem que eu desconfiava... Agora, cá pra nós, aqui tem cada coroa maravilhosa... Onde é que eu estava mesmo? Ah, na boate das sapatas... Naquela noite me limitei a beber, beber e cantar, até rachar o toba. (CANTA “GARÇOM”, COMO SE FORA REGINALDO ROSSI, MAS COM A LETRA TODA TRUNCADA, INVENTADA NA HORA).

Mulher – O que é isso? Bêbado de novo? E, ainda por cima, cantando essa música horrorosa! Venha cá, Adalberto, encoste mais para cá. Antes de fazer essas besteiras, entre para dentro de você mesmo e analise o tempo, a hora e o lugar. Onde é que nos encontramos em relação ao universo e a todos os seres que o habitam? Qual é nossa proposta de vida?

Homem - Você, por acaso, é alguma enviada de Deus, uma profeta do apocalipse, uma pastora da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias?

Mulher - Não, Adalberto, nada disso. Eu sou Madalena, o seu eu, o seu ego, o lado de dentro de você. Sou sua alma gêmea e seu lado polêmico, sua dialética e seu Paulo Coelho.

Homem - Não seria o Raul Seixas?

Mulher - Sem ironias, por favor.

Homem - Mas é que você está me deixando confuso, Madalena. Assim, não vou entender nada. Explique como você é meu eu se eu sou um ser indivisível...

Mulher - Isto é o que dizem os almanaques biotônicos e as consultas de Marta Suplício e Luciana Anta. Mas aqui não tem divã, não. Aqui tem o seu eu verdadeiro que, no caso, vem a ser o seu contraponto, o inverso do seu cogito...

Homem - Não entendi, não entendi. Co... o quê?

Mulher - Cogito, meu caro, é o que você pensa e age conscientemente, sua própria razão, aquilo que pode, até, tornar-se palpável. Isto é o que você acha que é. Mas, atrás do seu cogito existe o inconsciente, ou melhor, o subconsciente que sou eu, o seu eu.

Homem - Quer dizer que dentro de mim existe outro Adalberto que pensa por mim, fala por mim, age por mim, enquanto estou dormindo, sonhando?!

Mulher - E acordado também, Maria Loura! Eu sou o seu lado amoral, imoral, livre e sedutor. O que você não tem coragem de fazer, devido às normas de conduta e bom comportamento e às pressões da sociedade, eu faço por você.

Homem - Mas eu sou um sujeito certinho, careta até, mas de bem com a vida. Nunca fui acusado de nenhum ato prejudicial a terceiros. Muito menos do jeito que você coloca: imoral, amoral, nunca. Minha única luta fora do que sempre fui foi fazer passeatas e atos públicos na tentativa de levar Lula ao poder. Mas nem isso deu certo.

Mulher - Assim você pensa, Adalberto. Você é muito mais do que suas convicções. Você veio ao mundo para promover a paz entre os homens; para fazer milhares de pessoas sorrir e chorar; para encantar verdadeiras multidões; para difundir a alma e os espíritos. Exagerando um pouco, você é a síntese do que seria Chaplin entre nós.

Homem - Como assim? Nunca imaginei que tivesse esse tanto de talento e sensibilidade. Como é que você sabe que posso empolgar tanta gente?

Mulher - Sua arte, Adalberto, sua arte! A explicação é muito simples, se você olhar para dentro de si mesmo, para mim. Faça um balanço e você verá: são quase 30 anos de arte, de cultura, de representação, de entrega e doação. Você saiu do interior de Minas, saiu do interior mais pobre do estado, para levar a boa palavra a todas essas pessoas. E só eu sei os sacrifícios enfrentados por você, isto é, por nós, para chegar aonde chegamos.

Homem - Mas eu precisava estar aqui. Desde que senti que era gente, tive a certeza de que este é o meu lugar. Neste ponto você tem razão.

Mulher - Eu sei, Adalberto, eu sei. Tanto que o perdoei quando você me abandonou e foi atrás de outros amigos e amigas. O bom é que você batalhou, batalhou, briquitou, briquitou, mas voltou para dentro de seu coração, de seu cérebro, voltou para mim.

Homem - Você vai acabar pirando o meu cabeção. O que eu sempre fiz foi correr estradas, procurar novos caminhos e atalhos, encarar a dura realidade que é o ato de viver como se o mundo fosse um imenso palco.

Mulher - Tudo isso eu sei, Maria Loura. Não se aflija com meus conceitos, não. O que eu quis dizer é que você, em alguns momentos, esqueceu que seu melhor amigo, seu maior companheiro, seu conselheiro firme e desinteressado, é este seu eu aqui. Desde quando você chorou pela primeira vez, eu sempre estive ao seu lado. Desde aquela época que você lembrou, eu sou a gente que palpita em seu peito, em seu seus neurônios, em seu corpo. Eu sou a metade que pensa você. E a que o empurra para a frente. Ou para trás...

Homem - Quer dizer que todas aquelas minhas ousadias, toda minha coragem, todas as minhas decisões, todos os meus vacilos passaram por suas mãos?

Mulher - Digamos que sim, Adalberto, tudo passou pelas minhas mãos. Todo mundo tem sua dicotomia, vamos dizer assim. Eu sou seu outro pedaço, o pedaço que falta no lado de lá. Em todos os momentos. Quando você era apenas um menino correndo nu no sertão de Minas, eu estava sofrendo junto com você. Fui eu quem o aconselhou a não se entregar, a não virar um perigoso pivete, a ser mais atento com seus pais, a caminhar em direção à glória e não simplesmente, como diria Carlos Drummond de Andrade, ser apenas um "gauche" na vida.

Homem - Quer dizer que era você que cochichava ao meu ouvido quando eu tinha vontade de pular lá de cima da Ponte dos Ciganos e não voltar nunca mais à tona?

Mulher - Claro, Adalberto. Eu sabia a dor da fome que corroía suas entranhas. Sabia das lágrimas que brotavam em seus olhos cada vez que deixava de ser amado para ser humilhado; sabia do medo que sentia daquelas pessoas que se julgavam ricas e poderosas; sabia de todas as suas agruras e frustrações. O que fazia eu, então? Procurava consolá-lo, animá-lo, demovê-lo da idéia de que tudo é ruim e perverso, de que a vida é uma merda e tudo vale a pena...

Homem -...quando a alma não é pequena. Mas por que não evitou que eu passasse por todas aquelas humilhações, como naquele dia em que a professora me expulsou da sala de aula apenas por que eu estava descalço? Ou quando tive um acesso e quase morri de convulsão após ficar três dias sem comer? Você não diz que é o meu eu e que o eu salva tudo? E agora, José?

Mulher - Porque assim estava escrito, Maria Loura. Questão de fatalidade, que nenhum de nós tem o direito de mudar. Você teria que passar por todas essas privações para sentir a importância da posição a que chegaria mais tarde. Eu também pensei na hipótese de abandonar tudo no meio do caminho. Mas fui forte e isso é o bastante. Ou você acha que não sofri junto com você? Sofri quando você tremeu no picadeiro daquele circo de Porteirinha, debilitado, quase morto, mas firme em sua oratória poética; sofri quando você recebeu um não daquela moça linda, fascinante, riquinha, que morava bem em frente à sua casa, na Rua Francisco Sá; sofri quando você levou uma surra de três dias por ter encontrado um caminhãozinho de plástico na rua, que sua mãe dizia que você roubara; sofri quando você passava os natais cabisbaixo, triste, como se fosse a pior de todas as criaturas, o mais infeliz filho de Deus. Ou do capeta.

Homem - Mas se você viu tudo isso, por que não me amparou? Você foi colocado dentro de mim para ser meu protetor ou meu carrasco?

Mulher - Não se trata disso, Adalberto. As coisas acontecem como têm de acontecer, já disse, como está escrito. Nada é inconseqüente. Quando pode, eu dou um empurrãozinho, ou uma refreada, mas não posso, de maneira alguma, contrariar o que foi escrito por aquele lá de cima. Entendeu, meu?

Homem - Entendeu, porra nenhuma! Se é assim, então não precisava você estar dentro de mim. Bastava eu ser eu mesmo duas vezes. Isto aqui, ó! Pra que serve esse carinha inútil, inerte, que fica aí apenas para censurar o meu pensamento e as minhas ações irresponsáveis, porém, libertadoras?

Mulher - Vamos devagar, Adalberto, senão o carro tomba. Primeiro, eu não sou carinha nenhum. Eu sou tão-somente imagem e imaginação. Depois, seu sofrimento não é o único sofrimento do planeta. Uma das minhas funções é, justamente, evitar que o seu egoísmo supere o egoísmo de todas as pessoas.

Homem - Está certo, porreta, mas onde a lógica disso? Eu fudido o tempo todo, vivendo as piores situações e um eguinho dentro de mim dizendo: "Faça isso, faça aquilo; sai dessa, não faz isso não". Por acaso, você estava comigo quando eu tive aquele princípio de pneumonia? Ou quando caí da Ponte dos Ciganos e quebrei a perna? Você estava junto quando resolvi ir para a cidade grande e, em lá chegando, comi o pão que o diabo amassou? Ou quando a polícia me prendeu só porque usava cabelos longos e não tomava bando há uma semana, por falta de chuveiro? Você, Madalena, estava junto de mim quando eu era obrigado a dividir um sanduíche com um amigo porque não tinha dinheiro para comprar um só para mim? Ou quando era obrigado a doar sangue todo dia só para ganhar um copo de leite? Estava, Madalena?

Mulher - Sim, sim, eu estava. Mas, como diz o estripador de Londres, vamos por partes... Você me acusa por displicência, negligência e omissão de socorro. Depois, como sempre fez, tenta transferir para mim tudo de ruim que aconteceu na sua vida. Em outras palavras, você me tacha de irresponsável e incompetente. Agora, venha cá, diga bem dentro dos meus olhos: e as coisas boas da sua vida, hein, você credita a quem todo esse sucesso?

Homem - Que coisas boas que nada! O que tenho qualquer ser humano poderia ter. O que faço é o fazer de todo mundo. E eu lutei para conseguir isto. Não fiquei esperando nenhum eu-fantasma para ter uma merrequinha que seja. Aliás, se ficasse esperando, pelo que vejo, estaria pastando até hoje. Pode parecer mentira, mas vocês nem imaginam o que é a sensação de dormir na escadaria da Candelária ou nos calçadões da Presidente Vargas, com o medo na cabeça e a barriga nas costelas. Sim, minhas senhoras e meus senhores, eu passei por isso. E por muito mais, que a urgência da encenação não dá para contar. E essa sujeitinha aqui, essa tal de Madalena, apenas olhando, passivamente olhando... Ora, vá pros diabos que o parta!

Mulher - Adalberto, me entenda, eu sou apenas sua pedra de equilíbrio. Não fosse eu e você teria se matado, dado um tiro no coco ou se dependurado numa corda. Em todos aqueles momentos, eu estava sempre ponderando que o mais importante é a beleza da existência, de crescer e ser feliz. E é isto o que aconteceu com você. Não fosse eu e você já teria perdido sua personalidade, sua identidade, sua referência. O homem não pode ser unilateral. Ele não pode se direcionar apenas para um lado. Ele tem que ouvir o seu íntimo que, no seu caso, sou eu. Não foi assim que você fez quando conheceu sua primeira namorada, a Glorinha? E quando subiu em cima daquela primeira-mulher do Inferninho? E quando comeu Aninha Tromba D'Água, a rapariga mais requisitada de Zé Coco? E quando...

Homem - Peraí, peraí, assim também já é demais. Você viu tudo isso?

Mulher - Evidente, Adalberto! Ou você acha que eu sou uma múmia paralítica, que estou aqui apenas de bobeira? Sei tanto quanto você, uai! Posso fazer uma confidência? Eu senti tudo, tudo, tudo igual a você.

Homem - Filho da puta! Então você roubou metade do meu gozo... Sem-vergonha, dividindo meus sentimentos... Se pudesse, daria uma porrada na sua cara, seu aproveitador da tesão alheia! Fica aí, escondidinho feito um tatu debaixo da terra, e eu aqui, feito um besta, arranjando do bom e do melhor pra você se divertir...

Mulher - Mas, ainda há pouco, você não disse que eu só fiz você sofrer? É bom lembrar, inclusive, que registrei desde a sua primeira punheta. As mulheres são apenas consequência. Não é por isso que você vai me agredir. Nem pelas coisas boas nem pelas ruins. Nós dois somos um. Melhor explicando, eu sou você sabendo que você me é.

Homem - Agora o cara cismou de filosofar. Depois de tanta indecência, vem com essas filosofias de cursilho e encontro de casais... E mentindo, ainda por cima. Eu nunca disse que ia comer todas as mulheres do mundo. Isso é pura invenção da sua parte. O que eu disse, e repito, é que adoro as mulheres, que vivo em função delas e que, após 27 anos de profissão, encarando esta quarta parede, eu continuo fiel a esse meu lado profundamente masculino.

Mulher - Aí é que se instala o nosso conflito, Adalberto. Você sempre vai para lá quando eu estou para cá. Aí vira cabo-de-guerra, você não acha? Não sei como é que você não se tocou até hoje que eu sou o seu lado feminino, o lado Maria |Loura.

Homem - Epa! Sai pra lá, trem! Tá me estranhando? Tá achando o quê? Sai fora, meu! Eu sou homem, detesto veado e exijo respeito!

Mulher - Eu sabia que você teria esta reação. Aliás, eu conheço todas as suas reações. O que você não sabe é que esse seu machismo, esse seu jeito homem de ser, toda essa sua masculinidade está estreitamente ligada ao seu lado sensível, sensual, à sua forma poética que sou eu. Sou eu quem te faz sentir a brisa da aurora e o pôr-do-sol, a doçura da rosa e o cheiro do favo de mel, a graça do amor e o orgasmo da madrugada. Sou eu, Adalberto, quem habita os espaços não ocupados por seus desejos materialistas. Sou eu o seu eu único e autêntico.

Homem - Ah, é? Então, se você sabe tudo isso, se você tem tanto poder, se você sabe tudo e é tão sen-sí-vel, por que não tira a máscara, sai de dentro de mim, veste uma roupa de mulher, põe uma peruca e vem desfilar aqui fora?

Mulher - Porque o mundo aqui dentro é maior que o seu mundo, Adalberto. Maior e mais profundo. Essa carcaça que você diz que é real está chegando ao fim. Eu, não, eu sou eterno. Você e seu esqueleto morrem e eu fico. Eu não vou envelhecer nunca, Adalberto. Daqui saio para outro corpo, que tanto pode ser de um homem, de uma mulher ou de um homossexual. Eu não vou morrer nunca, Adalberto. Depois, para que sair daqui se tenho um cavalo aí fora para fazer isto por mim?

Homem - Você está me baratinando cada vez mais. Já disse que me acompanha desde que nasci; que conhece todos os meus fracassos e minhas vitórias; que gozou junto comigo com todas as mulheres do mundo; que é meu lado feminino; que é eterno e imorredouro; e, agora, me chama de cavalo, como se eu fosse macumbeiro. Você está querendo me deixar realmente louco.

Mulher - Não, não se trata disso. Desde que você chegou ao auge da fama e passou a freqüentar as mais importantes páginas da imprensa brasileira; desde que você se destacou como o principal astro da TV, eu senti que era hora de você dar uma olhada para dentro de você mesmo, voltar para o seu próprio umbigo e descobrir que eu existo. Porque a ilusão está acima da fantasia.

Homem - Aí você bagunçou tudo. Pra mim, ilusão e fantasia são a mesma coisa.

Mulher - Você se engana de novo. Quer ver? Vou abrir o dicionário que existe na sua cabeça...

Homem - Você está aí?

Mulher - Por enquanto, estou. Mas daqui a um milésimo de segundo poderei estar em outro lugar. No seu dedo polegar, por exemplo. Mas, vamos lá: ilusão é um substantivo feminino que quer dizer "engano dos sentidos ou fatos ou de uma sensação" É "o que dura pouco", o que pode ser dolo, fraude ou traição. Daí vem o ilusionismo, o ato de iludir ou enganar alguém. Bem diferente de fantasia, que significa "obra ou criação da imaginação, devaneio". Apenas para exemplificar, a melhor forma de fantasia é a vestimenta dos foliões de carnaval, o que está bem longe da ilusão que se comete contra alguém. Entendeu a diferença? Pois é. Eu sou sua fantasia e não sua ilusão. Você pode iludir, enganar, mas eu não. Eu tenho que suprir o seu lado alegre e divertido, suas paixões e suas contradições. Daí que represento o seu lado feminino.

Homem - Pelo amor de Deus, Madalena, não use essa expressão: "lado feminino". Tá certo que você diga que é minha fantasia, e eu vejo isso até sob o ponto de vista carnavalesco, mesmo, mas jamais tente desmanchar esta montanha selvagem que sou eu. Mantenha-se no seu distanciamento à Stanilavski e me deixe em harmonia com meu experimentalismo bresticiano. Você sabe, muito bem, que eu sou absolutamente transexual.

Mulher - Mas quem falou o contrário? Você pode ser o que é sem perder sua masculinidade. O lado feminino diz respeito, tão-somente, à fragilidade da sua matéria e à força da sua mente. Você, que enfrentou chuvas e tempestades, que ultrapassou inúmeros obstáculos e que, hoje, alimenta os sonhos de milhares de pessoas, não pode esquecer que aqui, num cantinho qualquer de seu corpo, existe um outro Adalberto que continua sendo criança para sempre. Vamos dizer, um Maria Loura...

Homem - Você disse, sim. Agora está querendo me confundir, me iludir. Claro que eu não vou acreditar que existe outra pessoa dentro de mim. Eu não sou rádio, eu não sou televisão...

Mulher -Ah, é? Está duvidando, é? Pois saiba que eu é que mando em você! Eu te domino! Quer ver?

Homem - Não, não, mil vezes não. Gente, tire esse capeta de dentro de mim. Chamem um exorcista, façam qualquer coisa. Eu não quero ser essa mulher que diz ser eu. Eu não sou mulher. Eu sou é homem!

Mulher - É, queridinho, com medo de quê? Você quer fazer o favor de colocar este batom! Anda, quem manda em você sou eu!

Homem - Não, não. Eu não quero, eu não posso, eu não sou menino. Eu sou é homem!

Mulher - Ah, que bom, ela é tão machona... Se desmanche em mim, querida. Hum, como ela é gostosa. Barbuda, ossuda, carinhosa, extremamente macha. Me dê um beijo, querida! Hum, assim, deixe eu apertar seus peitos, amassar suas coxas, apalpar sua bunda. Ah, como você é deliciosa, Maria Loura.

Homem - Senhoras, senhores, essa Madalena está acabando com meus dias, com minha honra, com minha reputação. Juro, senhores e senhoras, eu não sou mulher, eu não sou sapatão, eu não sou bicha. Homem é que eu sou! Por favor, devolva minhas roupas. Eu estou me sentindo ridículo!!!

Mulher - Ah, querida, como você está maravilhosa! Hum, esses seios, essa boca, esse bumbum. Hum, que pernas lindas. Eu gosto tanto de você, meu lado feminino! Pena que você não tenha uma xoxota pra eu comer, lamber, chupar...

Homem - Não, não, não quero. Isso é uma tentação dos capetas. Eu não quero ser mulher. Eu não quero perder minha superioridade sobre o sexo oposto. Retirem essa desgraça daqui!

Mulher - Está bem, Adalberto. Vamos parar com a brincadeira. Eu só quis mostrar que, se fosse bissexual, você não seria tão horrível como parece à primeira vista, como você pensa. Mas, já que você levou tão a sério o transformismo, por que não experimentar? Você não disse que é experimentalista?

Homem - Cê tá louco! E eu sou lá de ficar trocando cueca por calcinha? Ainda bem que você disse que foi só por brincadeira, tipo desfile de Xuxa e Pelé num apartamento de cobertura... Mas, puxando mais fundo o fio da meada: é verdade que tudo isso é verdade?

Mulher - Mas é claro, homem! Todo mundo tem um eu que age à sua imagem e semelhança. Uns são mais amenos, outros mais duros, uns afeminados, outros masculinizados...

Homem - E você, o que é?

Mulher - Eu sou eu.

Homem - Isso eu já sei. Você disse um milhão de vezes. O que eu quero saber é se você realmente interfere em cada passo da minha vida?

Mulher - Lógico que sim, Adalberto. Acho, até, que, a partir de hoje, você pode se chamar de mim falso e de eu verdadeiro.

Homem - Mas, nesse caso, eu teria que usar a linguagem dos índios. Assim: "Mim querer saber..." Fica muito esquisito.

Mulher - Tudo bem. Eu te dou a procuração, então: pode continuar me usando na primeira pessoa. Só lhe peço uma coisa: não diga a ninguém que conseguiu bater um papo com o eu que existe dentro de você.

Homem - Por quê?

Mulher - Porque todo mundo vai me querer. E eu não posso ser de todo mundo. Eu só posso ser de uma pessoa.

Homem - Mas essa sua fidelidade não acontece quando nos relacionamos com tantas mulheres. Pelo contrário, você foi, sempre, conivente com minha universalidade sexual.

Mulher - Mentira! Você está mentindo. Eu sempre quis evitar que isso acontecesse, sempre puxei você para cá e você sempre foi para lá. Sempre lhe falei que você só deveria dar assunto para uma mulher. E não para todas, senão você acabaria virando galinha, como acabou acontecendo. Eu não tenho nada com essa sua raparigagem, não. Afinal, é você que faz tudo para se auto-afirmar, para mostrar que é macho. Você, pelo que está escrito, Adalberto, só deveria amar a mulher que não o abandona nunca.

Homem - Quem?

Mulher - Eu!

Homem - Você está maluca, menina? Como é que eu ia amar dentro de mim mesmo, como é que ia te beijar, abraçar, fazer amor?

Mulher - Muito fácil, Adalberto. Basta você se olhar num espelho, sentir suas emoções, anular suas desavenças, aplaudir suas vitórias e refletir na sua imagem a imagem do seu semelhante. Sem ódio e sem piedade.

Homem - Aí já virou masturbação. E eu não sou narcisista, não consigo amar a mim mesmo diante de um espelho, seja d'água ou não. Muito menos amar a humanidade inteira. Já pensou...

Mulher - Parece que você não entendeu. O que eu disse é que, amando a si mesmo, você estará amando todo mundo. O problema é que você prefere odiar do que se amar e, consequentemente, me amar.

Homem - Não entendi...

Mulher - Eu explico: você passa a noite na gandaia em vez de dormir; bebe feito um barrão; não se previne contra a aids; não controla a pressão, apesar dessas pernas inchadas; briga com todo mundo; não conserva suas amizades; pisa na bola com todas as pessoas à sua volta. Tudo isso mostra o desamor que há em você.

Homem - Se você tem consciência de tudo isso, e se está dentro de mim, por que não procura consertar o que está errado?

Mulher - Porque você não deixa. Você é um cabeça-dura. Já tentei, mas fui infeliz. A única forma de me ver livre disso seria fugir de você, mas, aí, você desapareceria. Porque você não pode viver sem eu. Entendeu, meu?

Homem - Ih, você está usando cada gíria que parece mais de jogador de futebol. Qual é o seu time?

Mulher - O Mengão, você sabe. Ou não sabe?

Homem - Já tive uma recaída quando criança, mas me refiz. Meu time do coração, hoje, é o Botafogo. Faço tudo para ver a estrela solitária lá em cima, ganhando todos os campeonatos e fazendo vibrar o pavilhão alvinegro.

Mulher - Pois trate de mudar, que a ordem que eu tenho é para que você torça pelo Flamengo, o único time que pode lhe fazer feliz. Qualquer outro só lhe traz decepção, como aconteceu na maioria das vezes.

Homem - Epa, calma lá! Você vai querer interferir até no time do meu coração, fazer eu torcer contra o Fogão? É muita cara-de-pau...

Mulher - Cara-de-pau coisa nenhuma. Quer encerrar o papo por aqui ou continuamos conversando numa boa?

Homem - Realmente, eu estou muito curioso. Vamos continuar, sim. Vou mudar de camisa como estou sempre mudando de mulher. É fácil, muito fácil.

Mulher - Eu sei que você é muito vulgar. É por isso que estava dizendo que, se eu o abandonar, você desaparece. Entendeu, meu?

Homem - Claro, Romário, desculpe, desculpe... claro, Madalena. Entendi perfeitamente. Mas, pensando bem, você pode ser morto também. E se eu matasse você?

Mulher - Aí, meu caro, você passaria a zanzar pelas ruas como uma besta louca, sem razão nem solução. Seria mais um débil atirado à multidão. Sem eu você deixaria de ser você.

Homem - E você deixaria de ser eu...

Mulher - Só que eu teria uma segunda chance de ser o eu de outra pessoa. E você, não.

Homem - Como você pode provar que é imortal sem ter entrado na Academia Brasileira de Letras?

Mulher - Me mate para você ver.

Homem - Matar não é a solução. Eu prefiro fazer um pacto de amizade perpétua como você. Para ser diplomata: com meu eu.

Mulher - Exatamente, Adalberto. É para isso que provoquei toda essa discussão. Se nos unirmos, ninguém será mais forte do que nós.

Homem - Mas será que as pessoas querem que vivamos assim, imbecilizados, passivos, indiferentes à realidade? Senhoras e senhores, o que devemos fazer, eu e meu eu? Devemos continuar em conflito ou estabelecermos a paz? Continuar questionando todas as formas de convivência entre os homens ou nos consolar com a degradação da humanidade? Brigar pelos nossos direitos e ideais ou aceitar as ideologias alheias e os ditadores de ocasião? Ser contra tudo e contra todos ou simplesmente calar? Não, não precisam vir ao palco, não. Nós vamos aí ouvir a opinião de vocês. (DESCENDO COM UM MICROFONE DE MENTIRA) - A senhora, aqui, toda elegante, o que acha que devemos fazer? Como? Não é isso? Pois foi o que disse para esse meu eu safado: de nada adianta ficarmos aqui parados, falando de nós meses, se as crianças estão morrendo de fome e os traficantes estão trocando tiros com o exército. Muito obrigado, madame. E o senhor, o que diz about this problem? Eu sabia, eu sabia, o cavalheiro prefere a luta entre o id e o ego, entre o eu e o meu eu, do que aceitarmos goela abaixo esse governo enganoso que nos massacra todo dia. Fantástico, senhor, fantástico! A mocinha aqui de trás concorda ou discorda? Cruz credo, pé de pato mangalô três vezes! Tão mal educada assim... Não ter nada pra declarar é demais para mim. Você, garota, está parecendo general da ditadura militar quando ia ser entrevistado: "Não tenho nada para declarar". Corta, corta! Vamos ouvir este jovem com cara de professor: você aprova ou reprova a dupla personalidade? Aprova, não é? Pois ele vai ver só. Me criticando só porque não me submeto a seus caprichos, a suas ordens. (DE VOLTA AO PALCO). Esperem só até ele botar a cara de fora.

Mulher - Que baixaria! Que pouca vergonha! Que coisa feia, Adalberto! Você desceu ao seu último degrau! Como é que manipula a massa tão descaradamente! Você apenas impõe a sua opinião e diz que é o povo que está falando! Você fez pior que os anões do orçamento da União, os crápulas que acabaram com o renascentismo e implantaram o terror do barroco católico na antiga Roma e os asseclas de Hitler, juntos. Pior, muito pior. Você é o substrato da ignorância humana, você é um verme!

Homem - Por que tanta raiva? Só por que fiz uma pesquisa de opinião pública e saí disparado na frente?

Mulher - Que pesquisa que nada! Nem a Proconsult fraudaria tanto uma pesquisa como você acaba de fazer. Nem a Proconsult.

Homem - Deixemos a sondagem de lado. O que eu quero mostrar é que nossas diferenças são nossas igualdades. Só nos daremos certo se perseguirmos um ideal que contrarie o próprio ideal. Só assim seremos infelizmente felizes. Para sempre.

Mulher - Mas foi você que propôs um pacto de boa vizinhança, quis apertar a minha mão na Cúpula de Brasília. Foi você que implorou para que evitássemos o confronto em nome do carinho, da consideração e da amizade.

Homem - Fui eu sim. Mas isso não quer dizer que tenha de me tornar seu capacho e seu sapato. Isto quer dizer que você tem que respeitar a minha opinião, seja ela qual for.

Mulher - E vice-versa...

Homem - Aí já é outra conversa, Adalberto. Porque quem enfrenta a dureza do mundo, quem sofre frio e calor, quem encara os mais terríveis bandidos e as mais ignóbeis mulheres, quem padece das aventuras e desventuras da política econômica sou eu. Você fica aí, na sua, sob o manto protetor que é este sujeito aqui, sem correr risco algum. Você não tem carne, não tem osso, não tem cara para quebrar. Você é apenas um fio de coisa nenhuma, sem conteúdo, sem forma, completamente vazio.

Mulher - Pois que suas pernas sejam paralisadas agora mesmo. Quero ver como é que você vai ser tanta coisa com elas esmolambadas. E mais: quero ver como você vai fazer sem minha assessoria, sem minha sapiência.

Homem - O que vem de baixo não me atinge...

Mulher - Ocorre que eu não estou embaixo. Estou em cima, no painel de controle. Daqui posso comandar todo o seu sistema nervoso central. E até a coluna. Até sua coluna... Quer ver?

Homem - Oh, não, minhas pernas estão amolecendo, meus braços estão perdendo a articulação, minha boca está entortando. Meus músculos perderam a elasticidade. Oh, não, estou perdido. Eu, eu, cadê você?

Mulher - Eu não me chamo eu, eu me chamo Madalena, primeira e única. Está pouco ou quer mais, seu cretino? Rá, rá, rá.

Homem – Madalena, Madalena... (CANTANDO) Ô Madá... ô Madá, ô Madalena... cadê você? Oh, não, sinto que perdi até o poder de esfíncter e já não consigo segurar os intestinos. Era uma coisa que só esperava perder na morte. E esse pulha carregou tudo. Madalena, Madalena (CANTANDO), você é muito perversa, Madalena. Você não é o meu eu, Madalena?

Mulher - Tentei ser, Adalberto, mas você colocou tudo a perder. Você me maltratou, me desonrou, me traiu, me esnobou. Agora é a minha vez de falar na primeira pessoa. Seu corpo já não existe enquanto matéria. E, como um duende, agora sou soberano sobre seu consciente e seu inconsciente. Eu sou o dono de toda essa massa falida em que você se transformou.

Homem – Madalena, Madalena, onde está você? Você é muito má, Madalena, mas eu saberei perdoar tudo. Pela minha mãe, Madalena, devolva meus sentidos, meu tato, meu olfato, minha visão, minha audição, minha tesão. Madalena, dou um milhão de dólares para que você traga de volta a energia que tirou de mim. Juro por minha mãezinha querida!

Mulher - É a segunda vez que você fala em sua mãe. Agora, né? Lembra quando ela pedia para você não ficar até tarde na rua, pois era sozinha e doente, e você só retornava no outro dia? Quando batia a panela na cabeça da coitada porque ela não conseguia servir-lhe na hora certa? Quando sua mãe, uma pobre viúva, implorava para que não bebesse cachaça e você só chegava bêbado, quebrando tudo que encontrava pela frente? Lembra-se, Adalberto?

Homem - Madalena, não Madalena, não me torture tanto assim. Deixe as relações familiares pra depois. Eu só quero que você me devolva os movimentos para que possa sair desta cadeira de rodas. Faça isso, amorzinho!

Mulher - Rá, rá, rá. Então o todo-poderoso machão está manso feito um cordeirinho? Bobagem, Adalberto, você tem forças suficientes para começar tudo de novo, inclusive sem a minha ajuda. Como dizia Laci, aquele ponta direita do Atlético Mineiro: "Comigo ou sem migo, você joga do mesmo jeito..."

Homem - Não é verdade, Madalena. Eu preciso muito de você. Estou sofrendo muito. Esse tempo todo aqui, apalermado, feito um parasita, sem ação nem reação. Não, Madalena, eu quero voltar a ser aquele ser varonil, corajoso, desbravador do universo. Eu quero de volta o direito de ir e vir que a Constituição Federal me permite.

Mulher - Pinduca, olhe aqui: mesmo sem todas suas condições físicas, você pode ser útil a seu semelhante. É só ter vontade própria. Com esse um milhão de dólares que você me ofereceu, sabendo que eu não tenho como usá-lo, você pode comprar um carro adaptado, um avião ou um piloto com helicóptero e sair rodando o mundo para falar sobre a alegria de viver para pessoas iguais a você, vítimas de acidentes, gerações equivocadas, talidomida, ou outras circunstâncias. Você vai transferir para essas pessoas as mensagens enviadas pelo pai celestial. Sem bancar o José Sarney, você pode levar a milhares de deficientes a filosofia de que "é dando que se recebe..." Dando amor, paz e confiança e recebendo muito mais de volta. E você não vai precisar fazer muita força, não. Eu estarei aqui para ditar tudo o que você vai dizer nesses encontros.

Homem - Não, não, eu não quero ser aleijado não.

Mulher - Estão vendo, o homem é egocêntrico mesmo, só pensa em si mesmo. Depois ainda falam que o homem cultiva a fraternidade, a solidariedade, a igualdade... Você não vale nada, Adalberto. Você tem que ajudar seus irmãos, os excluídos.

Homem - De forma alguma. Eu não nasci para ser padre, pastor nem guru. Eu quero ser agnóstico como sempre fui.

Mulher - Ou você se sujeita a todas as ordens e determinações que seu eu lhe der daqui para a frente ou desaparecem todas as esperanças de volta ao passado II. Ou seja, você vai ficar longos e longos anos aí, entrevado, podre, enquanto eu procuro outro corpo para me alojar.

Homem - Onde é que você está? Satisfaça pelo menos essa minha curiosidade: em que parte de mim você se encontra?

Mulher - Estou aqui, Adalberto, misturado à sua massa encefálica, comandando os seus impulsos e repulsas, que é para você parar de falar na vitória constante da matéria sobre o espírito.

Homem - Você é um espírito desencarnado?

Mulher - Sei lá, Adalberto, sei lá. Eu só sei que sou. E, sendo, tenho comigo uma carga magnética que move o animal que é você. Assim são todos os eus que animam os seres. Se eu der um passo, a humanidade anda. Se eu parar, todo mundo pára também. É essa função cósmica que me faz diferente de você.

Homem - Então, se você é Deus, faça o que estou pedindo.

Mulher - Deixa de ser presunçoso, Adalberto. Você continua o mesmo, apesar do castigo. Eu não sou Deus porra nenhuma. Eu sou apenas eu.

Homem - Ainda é? Você não disse que agora é comandante das minhas forças armadas e que se exonerou do meu eu?

Mulher - Depende de você, Adalberto. Tudo o que tinha de lhe falar, já coloquei aqui na mesa. A mesa dos bons espíritos. Agora, cabe a você decidir se seu templo continua sendo apenas um barracão de lona preta ou se volta a ser uma mansão de carne e osso tipo aquela que fazia inveja aos homens mais importantes desta cidade.

Homem - Juro, Madalena, juro por tudo que é sagrado que, a partir de hoje, visarei só a bem-aventurança. Nunca, nunca mais procurarei semear espinhos onde deveria ter espalhado rosas e jasmins.

Mulher - Esse discurso está muito fresco pro meu gosto. Seja mais objetivo pra ver se eu estou de acordo ou não.

Homem - Está bem, está bem, eu vou ser um homem de bem.

Mulher - Aí você está fazendo simplesmente uma rima. De pé quebrado, por sinal.

Homem - Pô, Madalena, você não concorda com nada que eu digo. Já que é assim, porque você não toma a iniciativa e impõe logo as condições para que eu possa me normalizar?

Mulher - Pois que sim, Adalberto. As condições são as seguintes: primeira, "honrarás a teu pai e tua mãe, para teres uma vida dilatada sobre a terra que o Senhor te há de dar; segunda, não matarás; terceira, não cometerás adultério; quarta, não furtarás; quinta, não darás falso testemunho contra o teu próximo; sexta, não cobiçarás a casa de teu próximo: não desejarás a sua mulher, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertences".

Homem - Você está jogando sujo comigo. Não tem nada de condições aí. Isto tudo está escrito na Bíblia. São os dez mandamentos.

Mulher - Pois se você conhece a Bíblia tão bem, qual é o problema em cumprir os mandamentos do Senhor?

Homem - Tem uma parte aí que é muito difícil de seguir. Essa da mulher do próximo...

Mulher - Então você vai querer continuar desse jeito aí, não é? Está bem, que permaneça como se encontra, então. Assim seja...

Homem - Amém! Não, não, amém não, ave Maria! Eu quero recuperar tudo que havia em mim, por dentro e por fora. Anda, anda, tem mais alguma condição?

Mulher - Eu sabia que ia acabar cedendo, seu materialistazinho! Preste atenção para o que vai fazer, ainda, a partir deste acordo: "Não adorarás imagem de escultura nem figura alguma de tudo o que há em cima no céu e embaixo na terra, porque eu sou o Senhor seu Deus; não tomarás meu santo nome em vão; santificarás o dia de sábado. Não farás nesse dia obra alguma, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu escravo, nem a tua escrava, nem a tua besta, nem o peregrino que vive das tuas portas para dentro". E então, topas?

Homem - Não sei, eu estou muito confuso, indeciso. Não sei se vou seguir tudo isso, não. Eu sempre fui muito pecador pra mudar assim de uma hora para outra. E se eu falhar em alguma dessas condições?

Mulher - Aí virá outro castigo: você será condenado ao fogo eterno, após viver uma imobilizado como um desgraçado - isto é, sem graça nenhuma -, pedindo esmola aqui e acolá. O que é melhor para você?

Homem - Não tem jeito de abreviar a morte, não? Eu prefiro a morte a tanto flagelo. Por favor, Madalena, traga a guilhotina.

Mulher - Impossível, Adalberto. Eu não posso interromper o que está previsto nas escrituras, sob pena de ser penalizado também. Que vá você para o inferno. Eu, não, urubu!

Homem - Oh, meu Deus, por que eu sofro tanto? Por que não reservaste um destino melhor para este teu filho? Por que colocaste esse sujeitinho para atanazar o meu dia-a-dia? Oh, meu Deus, conceda-me a graça do fim imediato. Mate-me, Senhor!

Mulher - Seu bobo, não está vendo que tudo isso faz parte da representação e que nós estamos apenas encenando? Você se esqueceu que está, neste momento, exprimindo sua capacidade de jogar no palco a angústia coletiva? Saia dessa cadeira, Adalberto. Deixe de ser personagem e volte à condição de ator de sucesso para imensos públicos. Eu te ordeno: levante-se, Adalberto! Ande, levante-se! É para a frente que você tem que ir.

Homem - Outra vez? Você acaba me matando do coração com essas brincadeiras de mau gosto. Da próxima vez que me hipnotizar, vou apelar feio com você. Ainda bem que tudo é passageiro...

Mulher - Menos o trocador... Mas não importe com isso, não. As lições que você aprendeu nesse contato com o seu eu podem servir de exemplo para muitas pessoas que, ali na platéia, ainda não experimentaram a auto-avaliação, a busca de sua auto-estima. Enfim, nem tudo está perdido.

Homem - Mas não é certo você ficar me aplicando essa bateria de testes sem aviso prévio. Já pensou se o relógio para...

Mulher - É bom para testar sua adrenalina também, Adalberto. Você carece desse tipo de exercício para manter a pressão sob controle. A propósito, seria bom que você procurasse um analista.

Homem - Por quê? Está me chamando de louco, é? Por acaso, Madalena, você está insinuando que tudo isso aqui é uma simulação de terapia intensiva? Que história é essa?

Mulher - Rá, rá, rá, peguei o seu ponto fraco. Na realidade, eu é que sou sua realidade. Você é só uma nuvem de ilusões que passa por sobre a sua cabeça. Você é apenas uma auréola. Eu é que piso firme no chão.

Homem - Então, nesse caso, eu não existo... Eu não ando, não me alimento, não trabalho, não durmo, não converso com as pessoas e os animais... Você quer dizer que sou apenas um fantasma no meio da multidão? Pois se eu fui inclusive recenseado pelo IBGE, tenho cartão de crédito, sou registrado no PIS...

Mulher - Não é exatamente isto, Adalberto. Você não é um fantasma. Você é um monstro gerado pela tecnologia de ponta e que, feito um robô razoavelmente inteligente, está neste plano etéreo apenas para seguir as minhas querências. Na realidade, você é um trapo que não se movimenta se eu não der, todo dia, um sopro que o oriente para baixo ou para cima, para a direita ou para a esquerda, para a frente ou para trás. Agora não tenho dúvida de que você captou a mensagem.

Homem - Puta merda, esse cara é mais sacana do que eu pensava. Olha só que teoria mais doida: querer me convencer de que sou um bebê de proveta, uma máquina do tempo, um esperma sintético saído das gavetas de Aldous Huxlei e seu admirável mundo novo... Não, não, não vou mais acreditar em suas mentiras, não.

Mulher - Pois que não acredite, Adalberto. Mas já dei razões de sobra para você se colocar no seu devido lugar. Como não consegui convencê-lo, vou embora. Fique com você mesmo, sem eu.

Homem - Não, não. Eu prometo que vou seguir as suas condições. Eu não quero ficar sozinho não.

Mulher - Todas?

Homem - Todas.

Mulher - Inclusive as condições de não matar, não furtar e não cobiçar a mulher do próximo?

Homem - Essa última, não.

Mulher - Você vacilou demais. Até nunca mais, Adalberto. Vou procurar um homem que seja fiel ao meu lado feminino. Cansei de ser passado para trás.

Homem - Não, não, espere mais um pouco. Vou pensar...

Mulher - Seu tempo esgotou-se. Eu estava apenas checando para ver se não ia acontecer de novo. Qualquer hora você me troca por outra. Você é um inválido, Adalberto. Você não respeita seus próprios sentimentos, você me traiu a vida toda e continuará dormindo com todas as mulheres do próximo. Já não existe lugar para mim dentro de você. (CANTANDO

OBRIGADO À VIDA (De Violeta Parra), COMO SE FORA MERCEDES SOSA):
Obrigado à vida que me tem dado tanto
deu-me dois olhos que, quando os abro
perfeitamente distingo o preto do branco
e no alto céu, o seu fundo estrelado
e nas multidões, o homem que eu amo.

Obrigado à vida que me tem dado tanto
deu-me o ouvido que, em toda a amplitude,
grava, noite e dia, grilos e canários
martelos, turbinas, latidos, chuviscos
e a voz tão terna do meu bem amado.

Obrigado à vida que me tem dado tanto
deu-me o som e o abecedário
e, com ele, as palavras com que penso e falo
mãe, amigo, irmão e luz iluminando
a rota da alma de quem estou amando.

Obrigado à vida que me tem dado tanto
deu-me a marcha dos meus pés cansados
com eles andei por cidades e charcos,
praias e desertos, montanhas e planícies
pela tua casa, tua rua e teu pátio.

Obrigado à vida que me tem dado tanto
deu-me o coração que todo se agita
quando vejo o fruto do cérebro humano,
quando vejo o bem tão longe do mal,
quando vejo no fundo do teus olhos claros.

Obrigado à vida que me tem dado tanto
deu-me o riso e deu-me o pranto
assim eu distingo a felicidade da tristeza,
os dois materiais de que é feito o meu canto
e o canto de todos, que é o meu próprio canto

Obrigado à Vida
Obrigado à Vida
Obrigado à Vida
Obrigado à Vida

(VOLTANDO A FALAR) - Vou atrás de um hara-christna.

Homem - Não, Madalena, eu assumo meu lado feminino inteiramente, eu sigo tudo que você mandar, mas não me deixe sozinho, não.

Mulher - É tarde, Adalberto, é muito tarde. Já conheci todo o seu comportamento e sei que nada mudará se eu continuar. A mim só me resta a liberdade. Eu também quero ser feliz. Adeus, companheiro!

Homem - Meu Deus, meu Deus, já não enxergo nada. Que escuridão é esta? Meu eu me abandonou. Estou sentindo um frio tão grande. Estou sem ninguém, será que estou perdido nas trevas? Alguém aí faça a caridade de acender pelo menos uma luz para que eu possa mostrar minha nova cara. (SAI CANTANDO ‘HOMEM COM H’, COMO SE FORA NEY MATOGROSSO):

Nunca vi rastro de cobra
Nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come
Porque eu sou é home
Porque eu sou é home
Menino eu sou é home
Menino eu sou é home
E como sou!...(2x)

Quando eu estava pra nascer
De vez em quando eu ouvia
Eu ouvia a mãe dizer:
"Ai meu Deus como eu queria
Que essa cabra fosse home
Cabra macho pra danar"
Ah! Mamãe aqui estou eu
Mamãe aqui estou eu
Sou homem com H
E como sou!...

Nunca vi rastro de cobra
Nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come
Porque eu sou é home
Porque eu sou é home
Menino eu sou é home
Menino eu sou é home
E como sou!...

Cobra! Home!
Pega! Come!
Porque eu sou é home
Porque eu sou é home
Menina eu sou é home
Menina eu sou é home...

Eu sou homem com H
E com H sou muito home
Se você quer duvidar
Olhe bem pelo meu nome
Já tô quase namorando
Namorando pra casar...

Ah! Maria diz que eu sou
Maria diz que eu sou
Sou homem com H
E como sou!...

Nunca vi rastro de cobra
Nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come
Porque eu sou é home
Porque eu sou é home
Menino eu sou é home
Menino eu sou é home
E como sou!...

Cobra! Home!
Pega! Come!...

Nunca vi rastro de cobra
Nem couro de lobisomem
Se correr o bicho pega
Se ficar o bicho come
Porque eu sou é home
Porque eu sou é home
Menino eu sou é home
Menino eu sou é home... (3x)

Mulher – É nisso que dá casar com veado...

É O FIM!

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