ENTRE CAMAS
Por Márcio Adriano Moraes
Professor de Literatura e Português da Unimontes
Foi impossível negar o convite. O celular tocou aquela musiquinha repleta de trinados e mordentes, estilo barroco bem allegro. Eram elas, as primas. Como os pais das moças viajaram, passariam à noite sozinhas em casa e resolveram convidar uma presença masculina. Apesar de terem cachorro, o homem macho sempre traz psicologicamente uma segurança mais eficiente. Não houve como negar o pedido, pronta a mochila com duas mudas de roupas, partida.
Muito bem recebido pelas duas as quais pareciam dois pequenos anjos de tão delicadas, peles e olhos inocentes. Essa comparação angelical é milenar na cultura humana, ainda que anjos não tenham pele e, quem sabe, nem olhos inocentes. Em cima da mesa, copos com refrigerantes. Como estava tomando suco, para mortificação durante o período quaresmal, era preciso suco. A prima mais nova prontamente se dispôs a fazer uma limonada suíça bem brasileira. A mais velha sugeriu uma pizza. A mais nova completou trazendo nas mãos um filme “Verdade nua e crua”. E o papo rendeu boas horas.
Avançado o tempo e como tinha horário marcado na manhã seguinte, o convite ao repouso. Só havia dois quartos na casa, o dos pais e o delas. Violar o santuário de um casal seria um pecado mortal. Dormir na sala seria uma possibilidade, mas as garotas se opuseram. O jeito foi repousar o corpo fatigado em um colchão entre as camas das duas. Tirar a camisa para dormir é quase uma regra masculina que deve ser seguida à risca. Ficar só de cueca seria uma apelação, então um bom shortinho resolveu todo o problema. Salve o inventor do babydoll. As primas com aquelas cores vibrantes, um vermelho vinho e um roxo bem escuro, converteram suas feições celestes em tentações demoníacas. Do chão, apenas com um lençol para fingir cobrir o corpo, era possível apreciar tais beldades uma de cada lado, bastava girar o pescoço.
O sono bateu devagar nas pálpebras e os olhos não resistiram. Todos em plenos sonhos. De repente, por cima um hálito frio e gostoso, mãos percorrendo todo o corpo, a reação foi não resistir à reação. Seria uma das primas? Os lábios se tocaram. Os corpos começaram a se atar como a seguir um ato, tal maquinista impossibilitado de frear um trem que começava a engatar. Mas só sentia o corpo de uma, a outra deveria estar na cama. E se o barulho a acordasse? Seria convidada para essa intimidade... explosão de êxtase. Nunca pensaria que a prima fosse tão quente. Que por trás da timidez límpida de sua pele, escondesse um ser lúbrico.
Na manhã, depois de secado o suor, as primas desejam bom dia. A cordialidade foi retribuída. Como eram muito parecidas, seria perigoso ousar uma insinuação do ocorrido durante a noite. Tinha de esperar algum olhar, alguma atitude que denunciasse a culpada. Ambas agiram naturalmente. Teria sonhado? Certamente, não. Foi real, ainda tinha no corpo o sabor feminino. Mas por que a ousada não se revelou? Os pais chegaram.
A caminhada de volta foi marcada por um gostinho de quero mais sem saber de quem. Deveria interrogar uma das primas? E se errasse a cartada? E se acertasse e recebesse como retribuição um apenas: “foi só distração momentânea”. Estaria apaixonado pelas duas? Afinal uma relação tão intensa como essa era raridade nesta vida marcada pela regularidade. Qual seria a verdade? Qual das duas estaria crua ali no colchão por entre camas?
Quase um mês depois do ocorrido, não houve mais diálogo com as primas. Elas simplesmente desapareceram. A razão é desconhecida. A vida continuou na mesma rotina, com o acréscimo daquela noite. De repente, após assistir a um filme não tão verdadeiro, mas bem assado, o telefone toca a mesma musiquinha. Eram as primas. Os pais haviam viajado novamente. Agora, sim, era preciso tomar uma atitude. Atendido o telefone, o mesmo convite. E a resposta: não.
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DOUTOR ADVOGADO
Por Ronaldo José de Almeida
Advogado e escritor
Outro dia numa roda de amigos a conversa sobre futebol corria solta, quando um senhor se aproximou e interpelou um colega o chamando de “doutor”. Devo esclarecer que o amigo interpelado é advogado. Assim que os dois se afastaram para melhor conversar, alguém levantou a questão, se advogado é ou não é doutor; se é correto ser tratado por tão honorífico título.
Várias opiniões foram manifestas, uns concordaram, outros não; outros mais diziam que somente depois de defender uma tese teria o advogado direito ao titulo de doutor. Fiquei ouvindo aquela discussão de leigos, com ouvido de mercador. Bem sei que em mesa de bar discussão não se finda e nem se chega a consenso algum.
O tratamento ao advogado de "Doutor", apesar de que nem todos os advogados exigem tal formalismo ou fazem questão de serem chamados assim, tem um fundamento jurídico.
A tradição é histórica e remonta ao Brasil Colônia. Naquela época, as famílias ricas prezavam sobremaneira ter em seu meio um advogado, assim como, um padre e um político. O meio de acesso a esses postos era a educação. Ser advogado, naquela época era ter um poder decorrente de uma formação privilegiada, de elite, fazendo com que a sociedade o colocasse numa posição superior na escala social.
O operador do direito possuía poder, devido a essa formação privilegiada. A tradição logo transformou o termo advogado em sinônimo de posição superior dentro da escala social. Destaca-se o Alvará Régio, editado por D. Maria, a rainha de Portugal, pelo qual os bacharéis em Direito passaram a ter o direito ao tratamento de "Doutor".
Atualmente, o título de “Doutor” é conferido pelas universidades aos estudiosos que, após concluírem curso de graduação, ingressam em curso de doutorado e, mediante defesa de uma tese, adquirem o título em questão, passando ou não pelo mestrado ou outro curso de especialização. Academicamente falando, esta é a forma de se conseguir o título de “Doutor”.
No outro pólo um Decreto Imperial (DIM), de 1º de agosto de 1825, pelo Chefe de Governo Dom Pedro Primeiro, deu origem a Lei do Império de 11 de agosto de 1827, que: criou dois cursos de ciências jurídicas e sociais, introduzindo regulamento e estatuto para o curso jurídico, assim como o título (grau) de DOUTOR para o advogado. (DEC. 17874A - 09/08/1927)
A Lei do Império criou o curso e em seu bojo afirmou que os acadêmicos que terminassem o curso de Direito seriam Bacharéis. O título de Doutor seria destinado aos habilitados no Estatuto da OAB. Assim, tendo o acadêmico completado seu curso de Direito, sido aprovado e estando habilitado em estatuto competente teria o Título de Doutor.
O Estatuto da OAB determina a necessidade de, além de preencher uma série de requisitos, ser aprovado em Exame de Ordem, para, só então, o bacharel em Direito poder ser considerado Advogado.
Então, segundo o texto legal, aqueles que concluírem o curso de "Ciência Jurídicas e Sociais" receberão grau de "Bacharéis".
Apesar da resistência ao tratamento do tema, o Decreto Imperial de 1.° de agosto de 1825 mantém-se em vigor até os dias atuais, uma vez que não foi revogado por outra lei e como não vai contra a constituição foi recepcionado por todas as constituições inclusive a de 1988.
Quanto a questão de ser uma lei muito antiga, é de se lembrar que o Código Comercial é uma lei de 1850 e que também está em vigor até os dias atuais, mesmo que só uma parte.
Portanto, legalmente falando, o advogado, habilitado segundo o Estatuto da OAB, é Doutor.
Não se trata de uma mera questão de lei, mas de tradição, e referida tradição não é da história contemporânea ou exclusiva de nosso país, mas tem seu nascedouro em tempos antigos. Torna-se necessário esclarecer que a tradição é também fonte legítima de Direito.
Em tempos idos os homens que promoviam conferências públicas sobre temas filosóficos eram chamados doutores. Aos advogados e juristas era atribuído o título de “jus respondendi”, ou seja, o direito de responder.
Após a fusão do Direito com o Direito Canônico, os diplomados eram chamados de “doctores utruisque juris”. Nas palavras do advogado Júlio Cardella, “honraria legítima e originária dos Advogados ou Juristas, e não de qualquer outra profissão.
Sendo essa honraria autêntica por tradição dos Advogados e Juristas, entendemos que a mesma só poderia ser estendida aos diplomados por Escola Superior, após a defesa da tese doutoral. Assim sendo, o bacharel em Direito, que efetivamente milita e exerce a profissão de Advogado, por direito lhe é atribuída à qualidade de Doutor.
Se para algumas pessoas, há a necessidade de defesa de tese, para que o advogado ostente o título de Doutor, tais pessoas devem atinar que é justamente este o trabalho diário de todo advogado perante os Juízos das Comarcas e Tribunais. Todo operador do Direito tem como tarefa diária a defesa de teses; o advogado propõe teses para oferecer uma ação, para defender um cliente, para contrariar o conteúdo de uma decisão judicial (recursos), etc.
Referidas teses são constantemente avaliadas pelos Juízes e, em alguns casos, apreciadas pelo Ministério Público. Vale lembrar que os Juízes constroem suas teses nas decisões que proferem, decisões estas que são avaliadas e às vezes contrariadas pelos advogados que interpõem recursos. Os próprios Tribunais Superiores são órgãos avaliadores e construtores de teses jurídicas (jurisprudência).
Defender teses e mais teses, eis a função diária de todo operador do Direito. Por isso, o juslaborista é um Doutor por excelência.
Assim sendo, o advogado deve antepor ao próprio nome, em seus cartões e impressos, o título de DOUTOR; deve fazê-lo, porque a história lhe credita direito ao uso de tal título. Por DIREITO E TRADIÇÃO, este título constitui adorno por excelência da classe advocatícia.
(créditos/Fonte: Júlio Cardella – Denis C. Cruz - Carmen L. V. Poubel)
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