domingo, agosto 21, 2011

MIRABELA, CIDADE DE MINAS, PERTENCE A SÃO SEBASTIÃO

A aposentada Maria José dos Santos, de 68 anos, mora em uma casa que herdou dos pais. De origem humilde, chama a atenção pela vaidade. Usa vestido de cetim amarelo e brincos prateados. Os cabelos, mantém bem arrumados. Mas com poucos recursos financeiros, não consegue reformar a própria casa, onde não há nem vaso sanitário. “A gente acaba improvisando, usando o quintal”, lamenta a mulher.
O dinheiro curto e a precariedade do casebre não são os únicos e nem o maior dos problemas da aposentada. Maria José tem medo de perder a posse do imóvel em que vive desde que nasceu. O motivo: não tem como quitar a dívida com São Sebastião, o verdadeiro dono do terreno onde a moradia foi erguida.
Pelo mesmo drama passam cerca de 3 mil dos 15 mil moradores de Mirabela, no Norte de Minas. Um deles é o desempregado Gean Carlos Fernando da Silva. Com a mulher, a filha de 1 ano e 7 meses e uma tia, ele também ocupa um imóvel que foi dos pais. “Não sei se, como eles, poderei deixar a casa para meus filhos. Meu sonho é regularizar essa situação. Mas a verdade é que não tenho condições de pagar ao santo”, desabafa o pai de família.
Por estar assentada em terras doadas por quatro fazendeiros a São Sebastião, Mirabela é conhecida como a “Cidade do Santo”. O secretário de Esporte, Lazer e Cultura do município, Fábio de Jesus Ribeiro Silva, afirma que o problema afeta principalmente os moradores do Centro, que vivem ao redor da Igreja de São Sebastião. “Eles não possuem registro dos imóveis”, diz.
Segundo Fábio, o atual prefeito, Lacerdino Garcia, e os anteriores tentaram regularizar a situação. Mas todos os chefes do Executivo esbarraram em inúmeros entraves burocráticos.
Um dos obstáculos é um fato jurídico inusitado: sem a posse legal da propriedade, os habitantes não conseguem lavrar a escritura em cartório, porque ali já está registrado que o dono das terras é o santo.
Restaria, então, requerer o direito de posse valendo-se do usucapião. Mas como o argumento não pode ser aplicado a bens do Estado, em todos os níveis, é incapaz de resolver a questão. Simplesmente pelo fato de a Igreja Católica integrar o Vaticano, que tem status de Estado.
O imbróglio jurídico se arrasta há mais de cem anos. Fábio explica que para regularizar a situação, o morador que adquiriu terras ou imóveis por meio de um contrato de compra e venda, mais conhecido como “contrato de gaveta”, tem que repassar à Arquidiocese de Montes Claros, que abrange Mirabela, um valor médio de R$ 5 por metro quadrado. “O que significa pagar duas vezes pelo mesmo terreno, sem contar as benfeitorias”, destaca o secretário.
Foi o que fez o vidraceiro Sidney Soares dos Reis, de 41 anos. Depois de comprar a casa onde mora por meio de um contrato de gaveta, ele resolveu montar um negócio no mesmo lote. Para isso, precisou de um financiamento.
Mas sem um documento oficial que comprovasse ser ele o proprietário do terreno, Sidney se viu obrigado a procurar a Arquidiocese de Montes Claros. E teve que desembolsar R$ 1.064 pelos 200 metros quadrados do lote.
“Na época da negociação, o procurador da Arquidiocese, que resolveu todos os trâmites, fez questão de ressaltar que o arcebispo estava fazendo uma caridade, pois o valor correto seria de R$ 1.600. Mas o ‘desconto’ já estava autorizado”, afirma o vidraceiro. Ele considera irregular o pagamento à Igreja Católica. “Comprei a casa e tive outra despesa para garantir a posse definitiva”, diz.
CONFUSÃO COMEÇOU EM 1899
Segundo a Prefeitura de Mirabela, as primeiras casas da cidade foram construídas em 1882, ao redor da Capela de São Sebastião – templo erguido por quatro ricos fazendeiros. Mas, em 1899, eles resolveram doar parte das terras para o santo de devoção. O documento de transferência foi registrado no cartório de Brasília de Minas, também no Norte do Estado.
O trecho final do termo deixa claro o direito de posse da Igreja Católica: “Por assim terem concordado, transferem ao doado Marthir São Sebastião todo direito, ação e posse do referido, podendo torna-lo judicial e extrajudicial, e os doadores, por suas pessoas e bens, obrigam-se a garantir a dádiva e defende-la quando forem chamados à autoria”.
Com isso, os imóveis da área pertencente à Igreja Católica passaram a ser comercializados pelo “representante” do santo, o arcebispo da Arquidiocese de Montes Claros.
A comunidade local sempre contestou a venda de imóveis pela igreja e muitos se recusam a pagar por casas adquiridas há décadas por meio de contratos de compra e venda registrados em cartório.
O delegado aposentado João Fiúza da Rocha é o morador mais antigo da cidade. Aos 104 anos, mas lúcido e com boa memória, ele chegou a conhecer os quatro fazendeiros. A casa dele, comprada em 1971, também não tem escritura. “Eu realmente não me preocupo. Paguei o valor justo pelo que é meu e será de meus filhos, netos e bisnetos. Considero que meus herdeiros legítimos não têm com o que se preocupar, pois ninguém vai tomar o que é deles”, diz.
Mesma opinião tem o ex-vereador Nilton Rodrigues Gusmão, de 77 anos. “Tenho um contrato de compra e venda e sou eu quem paga os impostos. Esta casa não pertence a São Sebastião e jamais alguém vai interferir nesta condição”, avisa.
O chefe de gabinete da Prefeitura de Mirabela, Antônio Márcio Vieira Lopes, considera a situação um “retrocesso”. “Impede o crescimento do município, que encontra dificuldades para captar investidores e financiamentos”.
Várias casas no Centro de Mirabela estão abandonadas e em péssimo estado de conservação. Um morador que pediu anonimato afirma que os imóveis foram deixados por pessoas humildes que, sem perspectivas de “quitar a dívida com o santo”, resolveram viver com parentes.
Segundo o chefe de gabinete da prefeitura, alguns moradores tentaram discutir o problema com o atual padre da cidade. Mas ele não teria aceitado debater o assunto, dizendo que “o santo não estava na Terra, mas tinha representantes para defender seus interesses”. Procurado, o padre não quis dar entrevista.
SANTO LATIFUNDIÁRIO ESTÁ NA MIRA DO ESTADO
O impasse secular envolvendo a Igreja Católica, São Sebastião, a administração pública e os moradores de Mirabela, no Norte de Minas, começa a ganhar novos capítulos. Diante da complicada situação jurídica envolvendo parte dos lotes da cidade, a Secretaria de Estado Extraordinária de Regularização Fundiária (Seerf) e o Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais (Iter-MG) informaram que já foi solicitado, junto aos cartórios de imóveis de Montes Claros, uma Certidão de Inteiro Teor referente às terras que ficam no entorno da Igreja de São Sebastião.
Em princípio, o objetivo é avaliar a documentação e verificar se também existem terras devolutas, ou seja, áreas públicas que em nenhum momento integraram o patrimônio privado, ainda que estejam irregularmente em posse de particulares.
O termo “devoluta” relaciona-se ao conceito de terra devolvida ou a ser devolvida ao Estado. Desde o início do ano, a Seerf já regularizou a situação de 201 imóveis em Mirabela. Mas todos eram rurais. Além disso, outros 105 documentos de legitimação de posse devem ser entregues até o fim de 2011.
A secretaria preferiu não se manifestar sobre as terras doadas a São Sebastião até que toda a documentação pedida aos cartórios de Montes Claros seja analisada.
No último dia 8, o prefeito de Mirabela, Lacerdino Garcia, esteve reunido com o secretário de Estado de Regularização Fundiária, Manoel Costa, em Belo Horizonte. Segundo o chefe de gabinete da prefeitura, Antônio Márcio Vieira Lopes, durante o encontro foi decidido que técnicos vão fazer um estudo para identificar a situação real na sede do município – não só das propriedades doadas a São Sebastião, mas também em toda a área urbana.
“Em relação às terras pertencentes à Igreja Católica, vamos estudar a possibilidade de um entendimento pacífico entre a prefeitura, o Instituto de Terras de Minas Gerais e a Mitra Diocesana, visando à regularização dos imóveis, uma vez que só a zona rural está sendo legitimada”, diz o representante da prefeitura.
O atual arcebispo da Arquidiocese de Montes Claros, Dom José Alberto, foi procurado várias vezes pela reportagem para falar sobre as terras “pertencentes” a São Sebastião e a viabilidade de um acordo. Mas, segundo a secretaria da Arquidiocese, ele estava viajando e seria a única pessoa autorizada a falar sobre a “Cidade do Santo”. (Fernando Zuba)

1 comentários:

José gomes disse...

A reportagem foi muito bem apresentada e condis com a realidade do fato, nota-se que a igreja católica não quer mudança no atual quadro, pois, "todo dinheiro que vier é lucro."